O livro chegou em casa em um período repleto de leituras obrigatórias. Junto com o livro só o peso de um nome: William Faulkner. Sabe autor que todo mundo já leu, menos você? Pois é. Como de costume, espiei com as mãos, cheirei com os olhos e me deixei levar pela curiosidade das primeiras linhas. Era uma manhã de sábado e eu nada sabia do enredo de "O Som e Fúria". Entre estranhamentos iniciais e uma vontade de saber como me livrar daquele emaranhado de vozes fui capturado e, quando dei por mim, estava em meio ao labirinto sedutor que constitui a linguagem de Faulkner.
“Ela pegou na minha mão e corremos pelas folhas barulhentas e cheias de sol. Subimos os degraus, saímos do frio claro e entramos no frio escuro. (…) Caddy tinha cheiro de árvore”
Essa primeira parte, em especial, constitui um desafio maior pois exige que o leitor assuma o papel de alguém íntimo que não precisa de explicações, que não se situa em uma ordem cronológica ou um conhecimento prévio do que está por vir. Somos arremessados em meio a esse fluxo de memórias, ódio, ciúme e agonia genuínos. E de lá não se consegue mais sair. Há sim, resquícios de uma trama, mas é como se tudo estivesse embaralhado na cabeça do narrador.
Na segunda parte, talvez a minha preferida, passamos a acompanhar os pensamentos de Quentin, o irmão perturbado por um amor proibido e que foi estudar em Harvard. Pela construção complexa de um dia na vida dessa personagem, reflexões acerca do tempo parece ser aquilo que move a consciência que ele tem de si próprio. E é visceral a relação estabelecida entre o amor que Quentin carrega e a medida do tempo que lhe resta. Ele quer um amor eterno, imperecível, mas como lidar com o desejo de eternidade?
“Porque o pai disse que os relógios matam o tempo. Ele disse o tempo morre sempre que é medido por pequenas engrenagens; é só quando o tempo pára que o tempo vive.”
Depois da segunda parte, a narrativa se fixa em Jason, o filho inescrupuloso que não se conforma com as escolhas da irmã Caddy e faz disso uma batalha com tudo e com todos que o rodeiam. Preconceituoso e movido por uma ganância que o faz roubar a própria mãe, Jason é constituído por uma fúria que nos leva a entender um pouco mais dos fatos caóticos apresentados nas partes iniciais do livro. A sua narração é a mais linear, mas ao mesmo tempo o desconforto permanece através do confronto com o cinismo demasiadamente humano da personagem.
E por fim, a quarta e última voz é narrada em terceira pessoa, mas focada em Dilsey, a empregada negra que funciona como uma espécie de alicerce para a família Compson. Dotada de um senso de realidade e humanidade exacerbados, é por ela que vislumbramos, de modo sutil e belo, o esclarecimento desse quebra-cabeças criado por Faulkner.
Numa escala menor, "O Som e a Fúria" parece abordar temas variados: suicídio, família, conflitos raciais no Sul dos Estados Unidos... mas há um fio condutor no que se refere a obra que diz respeito à sua linguagem inventiva, complexa e ainda assim fluida o suficiente para envolver o leitor em um labirinto de sensações. Cada pedacinho que parece solto à princípio, vai formando um rico mosaico da natureza humana à medida que se a trama se adensa. Cada capítulo terminado me fez querer reler o que foi lido e avançar para o desconhecido num movimento espiralado que se assemelha a dança celeste que vemos no quadro "A Noite Estrelada" de Van Gogh.
É preciso deixar-se carregar pelo vendaval de pensamentos, imagens e sensações que o livro contém. Não é a toa que entramos pela história pelo seu clímax e saímos dela através de um único momento delicado, de tranquilidade ímpar, vivenciado pelo retardado Benjy. Mais do que uma experiência puramente racional, "O Som e a Fúria" foi, pra mim, sem sombra de dúvida, uma experiência sensorial de onde eu não queria mais sair.
Imagem: Wolney Fernandes