Tema:
"Há venenos tão sutis, que, para os conhecer, cumpre experimentá-los. Há males tão estranhos, que, para lhes entender a natureza, é preciso contraí-los."
(Oscar Wilde)
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De Wolney Fernandes, cONTEM
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De Adriano Antunes, O vidro Azul.
- Senhor, infelizmente não é sabido a procedência. Para falar a verdade, nem mesmo quem o tenha trazido para cá. Trabalho aqui há dez anos e de fato, é a primeira vez que presto atenção nele. – percebendo o que havia acabado de falar, acrescentou – O que sei, e que fique só entre nós, foi o que me contaram. Uma indelicadeza minha, por certo, dizer isso, mas que não tira o charme do little blue, não é mesmo? – corrigiu rapidamente.
Os olhos de Henry, treinados para detectar rapinas, espremidos em longa análise, suavizaram ao olhar novamente para o pequenino frasco sobre o fino suporte de veludo negro. Parecia ainda menor visto assim, de perto. Girou o cristalino vidro azul turquesa, fez uma breve pausa, mais para admirar do que para decidir, e dirigindo-se a faustosa balconista, sentenciou:
- Podes embrulhar.
Naquele instante, Henry teve a certeza que era ele. Há longo tempo procurava por uma rara combinação e, depois de infrutíferas tentativas, finalmente sentiu ter encontrado algo que o completava de forma inacreditavelmente plena. A procura havia acabado.
(...)
Como fazia todos os dias, Henry caminhava tranquilamente pela Rua Saint Anthony em direção ao trabalho e distraído observava a luminosidade da manhã que revelava prédios e fachadas, projetando sacadas que sorriam empilhadas umas sobre as outras. Estava absorto nesses desenhos de luz e sombra quando, sem saber exatamente o porquê, atravessou a rua em direção a luxuosa loja de perfumes Desire.
No centro da vitrina, um grande vidro dourado imperava em seu trono, reinando absoluto, cercado de súditos de todas as cores e tamanhos. Henry suspirou. Procurava por algo especial, e como tal, esperava que fosse diferente de tudo que já havia visto. Aquele ostentoso vidro nada significava e os outros, todos velhos conhecidos, despertavam nele apenas o tédio.
Virou as costas para a vitrina, disposto a seguir seu costumeiro caminho, mas num deslizar de olhos, por cima do ombro, notou um brilho turquesa bem ao fundo da caixa de vidro. Tão pequeno, tão discreto, que em outros tempos, num outro dia, teria passado despercebido. Aproximou-se até encostar a face no gélido vidro. E lá estava ele, quase esquecido, um frasco limpo, de estrutura forte e nem um pouco apelativa, com um pedido de me leve nos olhos e a promessa de não te arrependerás inscrita na tampa. De longe o mais lindo.
Henry entrou, pediu especificamente pelo vidro azul e recebeu um irônico sorriso da balconista que não conseguia esconder a decepção, pois pretendia vender seu centésimo exemplar do gigante imperador. Sobre um suporte de veludo, no balcão, ela depositou o pequenino vidro com delicadeza planejada. Olhou apática para Henry. Um homem esguio, bem trajado, de traços fortes e olhar perdido. Um pretendente de respeito, mas segundo ela, com um defeito sério: péssimo gosto para perfumes. Ele, por sua vez, observava o frasco em silêncio, mas com o coração aos berros.
A balconista, em gesto calculado, retirou a tampa e ofertou o perfume a Henry que pegou o vidro com cuidado e levou até a altura do nariz. O azul turquesa transparente permeava promessas concretas. Inspirou vagarosamente. Círculos concêntricos de plenitude lhe entraram pelas narinas e Henry sentiu por um segundo o cheiro de Deus.
A balconista não desistiu de sua tática, acrescentando ácida.
- Muito, muito sensível; senhor. Esta combinação não está..., como posso dizer..., não é procurada com freqüência. Não está mais na moda. Colocamos ali por tratar-se do único exemplar que temos e possivelmente o único no mercado. Dizem até que não é mais produzido.Henry não registrou o que ela falava em tom forçado.
(...)
- Pronto senhor. Aqui está. Desejo-lhe sucesso e um ótimo dia.
- Terei, com certeza terei. Obrigado.
Quando saiu, o sol já havia tomado conta de toda a rua e brilhava em uma intensidade jamais vista. Resolveu retornar à sua casa. E lá chegando, colocou o vidro em local seguro e foi se banhar. Precisava tirar do corpo qualquer agente que distorcesse o incrível buquê de sua muito desejada aquisição. O mundo, que insistia em ignorar seus sentimentos, que esperasse.
Voltou animado, e despido, borrifou um pequeno jato no ar, deliciando-se com o toque das gotículas que eram absorvidas pela face, pescoço, ombros, peito, e escorregavam até as coxas. Deitou-se, ainda nu, em uma poltrona de couro confortável. Adormeceu ali, acariciado pelo toque do couro contra a pele e embevecido pelo cheiro da felicidade no corpo, sonhando com anjos de asas azuis suspensos em um céu de partículas peroladas.
Já se fazia noite quando acordou. Procurou no corpo o vestígio, o cheiro, e percebeu que ele já havia partido. Tentou localizar o frasco. Viu que permanecia em local seguro. Então, viciosamente, sucumbiu ao desejo e vestido apenas com aquelas gotas de cheiro, voltou a sonhar.
Mas, novamente ao acordar, constatou que como das outras vezes a pele jazia vazia. Ele havia esperado o sono para partir as escondidas. Aflito, ministrou uma terceira dose, e uma quarta. Tudo igual. Então, a imagem da balconista lhe veio à mente, enquanto sua voz repetia em velocidade distorcida:
“Muito, muito sensível; senhor. (...) Colocamos ali por tratar-se do único exemplar que temos. (...) Possivelmente o único no mercado. (...) Dizem até que não é mais produzido."
Os olhos de Henry injetaram-se desesperados. Um aperto no peito dificultava a respiração. Havia provado o gosto doce de um veneno letal. Tornara-se dependente. Fraco. Perdido. Fechou o vidro. Desejou não tê-lo encontrado, assim, de certa forma, poderia manter a ilusão de um dia ainda encontrá-lo. Mas o abismo insistia em sugar seus pés pelas unhas.
Em um movimento brusco, como quem foge para salvar a vida, colocou o frasco de azul cristalino turquesa dentro da gaveta da cômoda e a chaveou apressadamente. Sem pensar, foi até a janela e arremessou a pequena chave o mais distante que pode por sobre os telhados do outro lado da rua, sentenciando ali seu fim.
(...)
Então, no pequeno apartamento, se tu pudesses entrar, encontraria Henry excluído do mundo, adormecido da vida, nu sobre a cômoda com as narinas próximas ao buraco da chave, na distância mais segura que havia encontrado entre sua salvação e sua morte. Jamais foi sabido quem tenha durado mais.
*
Nos teus olhos
De cristalino azul turquesa
O fascínio das águas
E o medo da correnteza
(.)
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