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sexta-feira, 18 de abril de 2014

Vermelho Amargo


De cunho autobiográfico, Vermelho Amargo se insere naquela categoria de livros que nos rasgam a carne pela beleza e dor guardadas em seu conteúdo.

Por meio das fatias de tomates que a madrasta corta e dispõe no prato do menino que perdeu a mãe, somos arremessados em lembranças de uma infância cheia de vazios, mas ao mesmo tempo, permeada por deslumbramentos.

Uma narrativa breve e profundamente marcada pela perda. Exatamente por isso, densa, de cortar o coração e muito poética.

Mais não consigo dizer. Talvez esse vídeo e os trechos destacados abaixo digam melhor:

"Quando invertida, a palavra aroma é amora. Aroma é uma amora se espiando no espelho. Vejo a palavra enquanto ela se nega a me ver. A mesma palavra que me desvela, me esconde."

"Aturdido por ter a alma como carga, e suportá-la para viver o eterno que existia depois de mim."

"Sobre os dias, a ausência da mãe ganhava corpo. O tempo - capaz de trocar a roupa do mundo - não consumia sua lembrança. Quando se ama, em cada dia o morto nasce mais."

"Ao amar, desvendei a serventia do corpo, para além de guarda a alma imortal. (...) No amor, meu corpo delatou a presença da alma, que veio morar na superfície de minha pele."

"Passarinho é uma vírgula pontuando o céu."

"Viver exige perguntas e eu, mudo, não sabia responder."

"Não dar palavras ao desejo é ocultá-lo na solidão."

"A memória suporta o passado por reinventá-lo incansavelmente."

"Um sonho fora do sono persistia em mim. Nasci afogado por ele: o de desvendar o mar. Afundar-me em sua grandeza, salgar-me em sua salmora, esconder-me em suas ondas, surgir desafogado onde nem eu me sabia."
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Livro: Vermelho Amargo [5/5]Autor: Bartolomeu Campos de Queirós
Editora Cosac Naify

Foto: Wolney Fernandes

terça-feira, 15 de abril de 2014

Pausa


Um livro para ler, um artigo para terminar, prazos apertados, notificações facebookianas deixando a manhã movimentada e o tempo, escasso, escorrendo por entre os dedos.

Em meio ao barulho da construção ao lado, da buzina incessante no estacionamento, da pressa no meu peito e do parágrafo que precisa ser lido, ouço um som entrar pela janela.


Lembro do meu pai.

A música intensifica uma saudade e, aos poucos, vai plantando silêncios onde só há espaço para barulhos. Se ainda estivesse aqui, meu pai faria 64 anos neste 14/04/2014.

Senti vontade de conversar com ele.

"Ah, Chalana sem querer
Tu aumentas minha dor."

Fecho o livro e o computador. O parágrafo fica pra depois porque a vida sempre parece mais bonita nas pausas.

Imagem de Sophie Jodoin

sábado, 12 de abril de 2014

As Horas


Ler “As Horas” de Michael Cunningham depois de ver o filme foi uma experiência, no mínimo, curiosa. Digo isso porque o longa de 2002 é um dos meus filmes preferidos da vida e depois de assisti-lo inúmeras vezes, já o tenho guardado na memória em forma e conteúdo. Assim, ao avançar pelos capítulos do livro, as personagens já tinham rostos conhecidos, os cenários e diálogos pareciam familiares e, por vezes, parecia ouvir a trilha de Phillip Glass em vários parágrafos.

Essa é uma daquelas raras exceções em que o filme está à altura do livro. E é fácil compreender porque a história foi parar no cinema, uma vez que a escrita de Cunningham se assemelha a um roteiro cinematográfico.

Com maestria invejável, o autor costura as histórias de Virginia Woolf, Laura Brown e Clarissa Vaughn tendo como fio o romance Mrs. Dalloway. Três narrativas simultâneas que se complementam e tecem um painel dolorido sobre inadequações vivenciadas em meio ao fluxo incessante de situações banais do dia a dia.

Em 1923, Virginia Woolf tenta fugir dos sintomas de distúrbios mentais que a perseguem enquanto escreve o livro Mrs. Dalloway. Sua busca por um dia a dia “normal” ressoa no cotidiano de Laura Brown que, em 1949, encena o papel de dona de casa perfeita sem que seus sonhos e desejos estejam contemplados nesta tarefa. Ao ler o romance de Virginia, Laura parece tomar as palavras do livro como aquelas que descrevem seu destino.

Completando a tríade, na Manhattan do final do século XX, encontramos Clarissa que, em medidas idênticas revive os dramas de Mrs. Dalloway enquanto prepara uma festa para o amigo e ex-amante Richard, poeta, gay e aidético terminal.

O modo como estas mulheres vivenciam seus dramas domésticos é o que compõe o painel melancólico de sonhos perdidos, deixados no passado e impossíveis de se retomar. Todas as histórias lidam com a difícil – e nem sempre possível – escolha entre aquilo que está no plano dos desejos e aquilo que a realidade circunscreve.

Me impressionou bastante o modo como o autor conseguiu criar algo tão original a partir de uma obra já escrita e muito complexa. Pela composição de três mulheres (uma real e as outras fictícias) ele nos faz olhar para nossa própria realidade questionando o que ficou para trás e o que ainda nos resta daquilo que idealizamos para nossas próprias vidas.

Há ainda algumas curiosidades interessantes que permearam a leitura. Uma delas tem relação com o filme: Quando Clarissa é apresentada no livro, ela passeia pela ruas de Nova York e se depara com um set de filmagem. Ao ver uma estrela de cinema entrar em um trailer ela julga ser Meryl Streep, exatamente a atriz que viria a dar vida a personagem no longa de Stephen Daldry anos depois do livro ter sido escrito.

“As Horas” também foi a primeira opção de titulo para o romance “Mrs. Dalloway”, mas Virginia acabou optando em não usá-lo.

Enfim, livro imperdível e altamente recomendável.
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Livro: As Horas [5/5]
Autor: Michael Cunningham 
Editora: Companhia das Letras

Foto: Wolney Fernandes

terça-feira, 8 de abril de 2014

Mrs. Dalloway


Lembro de ter começado a ler Mrs. Dalloway há alguns anos atrás e abandonado a leitura por conta de uma complexidade que, na época, me pareceu intransponível. Desta vez, consegui dar cabo do livro inteiro, mas ainda assim não foi uma leitura fácil. Acabei descobrindo que a tal complexidade que tinha me impedido de terminá-lo na primeira vez, nada mais é do que a escrita em fluxo de consciência. Através desse fluxo, somos guiados pelo rol de personagens e temos acesso aos pensamentos, às angústias, à vida deles, sem que isso seja sinalizado de forma muito precisa. Por várias vezes, precisei voltar alguns parágrafos para ligar os pensamentos aos seus respectivos donos. No entanto, depois que terminei a leitura, percebi que esse ir e vir foi uma parte importante da experiência de ler esse livro. Não resta dúvidas de que Mrs. Dalloway é uma leitura que, realmente, requer um pouco mais de atenção e exige do leitor um maior envolvimento.

Ambientado na Londres da década de 20, o livro acompanha um dia na vida da Clarissa Dalloway quando ela resolve dar uma festa. Durante o transcorrer do dia, marcado pontualmente pelas batidas do Big Ben, Clarissa evoca a própria juventude enquanto se envolve nos preparativos da festa e, de alguma forma, seu caminho se cruza com vários outros personagens: Septimus Smith, um ex-combatente da primeira guerra mundial, está literalmente à beira da loucura e considerando suicídio. Peter Walsh está de volta da Índia para falar com seus advogados sobre um caso de divórcio e por aí vai.

Apesar do livro todo se passar em um dia, eu achei que os personagens são muito bem construídos e muito plausíveis. Acho que boa parte disso deve-se ao fato de que temos acesso aos pensamentos deles enquanto ainda estão tomando forma. E depois que nos acostumamos, esse recurso acaba criando uma dinâmica muito interessante, pois conseguimos apreender um pouco da “essência” de cada personagem já que suas ações são narradas segundo essa lógica que é bem parecida com a vida real. Um bom exemplo disso é o momento em que Richard, marido de Clarissa, decide comprar flores para a esposa porque ele conclui que a ama muito. O legal desse fato é todo o processo do pensamento dele se desenvolvendo e o que ocorre até o momento dele chegar na frente de Clarissa e fazer isso (ou não fazer, conforme acompanhamos o desfecho dessa parte). O que parece uma ação bem simples, quando acompanhada pela trama do pensamento de Richard, desde o momento da decisão da compra das flores, até estar diante da esposa para dizer o que ele concluiu é um processo que se revela intrincado e repleto de pormenores que é muito bom de acompanhar. E é assim porque é permeado por dúvidas, contextos, receios e outras variáveis num desenho muito próximo do que acontece na realidade.

O romance também termina em aberto e a sensação que eu fiquei é de que deixei algo passar, pois acabei de ler e minha vontade era voltar à história de algum modo. Na sequência, li o livro “As Horas” cuja trama foi montada tendo Mrs. Dalloway como base e confesso que me ajudou muito a entender o modo e a forma com a qual Virginia elaborou cada conflito descrito na trama. Tanto que terminei o livro do Michael Cunningham e voltei ao livro da Virginia para reler certas partes que me soaram mais fortes ainda do que na primeira vez. Sem dúvida, Mrs. Dalloway é um livro muito bem escrito e, apesar dessa dinâmica diferenciada, é de uma sensibilidade assustadora. Valeu a pena ter insistido e me deixado levar pela correnteza de pensamentos muito bem delineados por Virginia Woolf. É um livro que precisa ser lido e relido!
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Livro: Mrs. Dalloway [5/5]
Autora: Virgínia Woolf 
Editora: CosacNaify

Foto: Wolney Fernandes

terça-feira, 1 de abril de 2014

Apressadinho


Tranquei a porta do apartamento e me deparei com o menino apertando insistentemente os botões do elevador. Tal era sua pressa que só me notou no instante em que eu o ajudei abrir a porta para entrar. Até então, parecia conjurar algum encanto capaz de fazer o painel eletrônico soletrar, com a rapidez desejada, os números de cada andar.

Seguimos os dois em uma viagem silenciosa até o térreo. Ele, andando de um lado para outro com vontade de chegar. Eu, parado no canto, desejoso por desfrutar um pouco mais daquela ansiedade menina.

As portas se abriram e ele saiu em disparada me deixando pra trás. Desceu as escadas tentando retirar algo do bolso da bermuda e nem ligou quando a porta que ele atravessou quase me acertou o rosto. Ganhou a calçada e a rua como se alcançasse o céu.

Guardei aquele sorriso que me chegou aos lábios quando descobri o motivo da correria. Na esquina, ao lado do carrinho de sorvete, o menino pedia um picolé de limão.

Foto: Wolney Fernandes