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domingo, 30 de agosto de 2015

Esperas


Minhas esperas parecem malograr o florescimento dos desejos que eu cultivo. Tenho buscado meu sorriso matutino, meu olhar sereno, minha intenção mais genuína e nada acho a não ser a lembrança de outros tempos. Atônito ante a ausência de mim mesmo, sentindo-me num beco sem saída, corro até a janela e passo a contemplar a serenidade do outro lado da vidraça. E lá fico esperando por mim mesmo, sentado até a hora de voltar nem sei de onde.

Imagem: Cena do filme "Que Horas Ela Volta?"

A explicação das flores


"Há uma ponta de mangueira a que os filhotes de manga imprimem movimento delicado. Ela se mexe enquanto todo o resto da massa vegetal jaz inerte. Essa fina extremidade do galho, como uma antena, tem vida própria; embora lhe venha toda a seiva das entranhas da terra ela parece autônoma, acena, acolhe, dá boas-vindas virentes. Lá estão, da flor crestada pelo frio de junho transformada em pequenos frutos, entre folhas muito macias e verdes, os sinais que a árvore me faz.

Quem disse que a esquizofrenia é uma doença do sangue teve razão. Ela baixa nas veias e neste momento me move, estuante, na direção do galho me me acena, da lua que se entranha em mim, das vigas e ripas que cercam os escombros e lhes dão vida, pois essa ruína em vias de reconstrução me diz muitos segredos, me explica, me decifra, me convida a mergulhar para sempre em seus alicerces e ali deixar meu sangue, meus ossos, as seivas todas do meu ser que começa a se cansar do esforço de viver em vão."

Texto de Carlos Lacerda
Do livro "A Casa do Meu Avô" - p. 28-29

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O Legado de Eszter


O homem que Eszter ama vai voltar depois de um hiato de vinte anos. Atordoada por um turbilhão de sentimentos contraditórios, ela se prepara para a chegada de Lajos que, entre juras de amor no passado, acabou por desposar sua irmã. Às vésperas desse acerto de contas, Eszter nos apresenta o dilema que carregou pela vida inteira: seu amor é também sua perdição e, paradoxalmente, acalenta e dilacera seu coração como um encantamento que a conduz para o precipício.

"Ao me presentear, a vida foi maravilhosa, e ao me roubar, perfeita... que mais posso esperar?" [p. 05]

No livro, Sándor Márai tece uma trama onde os fios temporais se cruzam sem piedade sobre os personagens dessa história. Há uma elegância - eu diria quase cruel - no modo como ele utiliza o tempo para fortalecer o irrecuperável das coisas perdidas, colocando junto delas uma vontade de mudança que o tempo não permite.

"Talvez o tempo, que não se compadeceu de mim, talvez a lembrança, que não é cruel como o tempo, talvez uma graça especial que, segundo o ensinamento de minha fé, cabe também aos indignos e despeitados, talvez, simplesmente, a experiência e a velhice me levem a encarar a morte com serenidade." [p. 05]

Lajos é sedutor e consegue fazer o mundo orbitar em torno de si. No entanto, essa sedução é aniquiladora e atua como uma espécie de canto da sereia que enleva, inebria para depois afogar. Eszter, por outro lado, sabe disso e seu anseio por libertação traça um movimento entre a maturidade forçada e o desejo de reviver aquilo que deu sentido à sua juventude.

"Começo a crer que as decisões solenes e definitivas, que traçam o relevante na linha do destino de nossas vidas, são bem menos conscientes do que acreditamos mais tarde, nos momentos de rememoração e lembrança." [p. 07]

Tudo no livro é permeado por uma expectativa diante dessa chegada que vai alterar a rotina de uma vida simples e pacata que Eszter leva com Nunu - a criada da família - que faz as vezes da consciência crítica que ata o peso dos fatos à realidade. Assim como Lajos, os personagens dessa história são densos e capazes de nos fazer transitar junto de suas almas atormentadas.

"Nem acredito no passado! É tudo mentira, conspiração, cena de palco ensaiada, com adereços teatrais, cartas e juras antigas nunca ouvidas." [p. 94]

E é bem difícil acompanhar os fatos dessa história sem que uma angústia nos envolva diante dos encaminhamentos sugeridos pelo autor. Da metade para o final do livro, incrédulos, vemos Eszter caminhar rumo ao precipício que parece se desenhar no final da linha tênue traçada por uma vida de privações.

"E, ao mesmo tempo, sabia que ainda não suspeitava da verdade sobre a vida, sobre a minha vida e a dos outros, e só por meio de Lajos descobriria a verdade - sim, por meio de Lajos, o mentiroso." [p. 43]

Mesmo cientes da queda, seguimos esses personagens como leitores ávidos em função de uma escrita elegante e envolvente que nos faz testemunhas dessas contradições tão típicas da alma humana. Um livro irresistível que se impõe sem precisar convencer.

Foto: Wolney Fernandes

O Fundamentalista Relutante


"Princeton possibilitou tudo para mim. Mas não me fez, não poderia fazer-me esquecer coisas como o quanto gosto do chá desta minha cidade natal." [p. 17]

Changez é um jovem paquistanês que viveu um tempo nos Estados Unidos e que, de volta à sua terra natal, relembra os fatos que o fizeram retornar a Lahore, a segunda maior cidade do Paquistão. Sem muito rebuscamento, essa narrativa lembra um monólogo e é feita a um misterioso norte-americano que ele encontra em um café.

"O Fundamentalista Relutante" de Mohsin Hamid já começa sem rodeios, demonstrando o vasto conhecimento do protagonista em torno da experiência de se sentir estrangeiro. Sua fala mordaz busca apaziguar seu interlocutor, mas é feita com a ciência daquilo que o torna diferente.

"Ah, vejo que o assustei. Não se assuste com minha barba." [p. 05]

E é nessa diferença que se encontra o dilema de Changez. Formado em Princeton, funcionário de uma empresa de alto porte em Nova York e apaixonado por uma americana, o paquistanês passa a escamotear a própria identidade ao se deixar seduzir pela vida na América do Norte.

"Assim, aprendi a dizer a executivos da idade de meu pai que 'preciso disso já'; aprendi a furar filas, passando à frente de todos, com um sorriso extraterritorial; e aprendi a responder, quando me perguntavam de onde eu era, que era de Nova York. O senhor quer saber se essas coisas incomodavam? Com certeza; muitas vezes, eu me sentia envergonhado. Mas, externamente, não dava nenhum sinal disso." [p. 63-64]

O que altera essa farsa é o atentado ocorrido em 2001, pois junto das Torres Gêmeas começam a ruir também os sentimentos construídos por Changez em torno do sonho americano que ele tanto acalentou. A clarividência desse fato mostra, gradualmente, a relutância realçada no título do livro, pois o protagonista passa a se sentir um estrangeiro naquela terra que possibilitou com que ele tivesse muito mais do que poderia sonhar em seu próprio país. E ele, então, começa a olhar para si mesmo e sua terra natal de um outro lugar.

"É que nem sempre fomos oprimidos pela dívida externa, dependentes da ajuda e das esmolas internacionais; nas histórias que contamos de nós mesmos, não somos os radicais enlouquecidos e indigentes que o senhos vê em seus canais de televisão, mas fomos santos e poetas e - sim, isso mesmo - reis conquistadores (...) E fizemos estas coisas quando seu país ainda era um punhado de treze pequenas colônias que mordiscavam a borda de um continente." [p. 96]

Acompanhar a transição de um homem que habita um entrelugar é a grande qualidade do livro que além de dinâmico, possui personagens muito interessantes. Oscilando entre o global e o local, a narrativa precisa de Hamid consegue se aprofundar nas consequências particulares que um evento mundial pode provocar nas pessoas.

O livro, inteligentemente escrito em primeira pessoa, parte da experiência do próprio autor durante sua estadia nos EUA e também virou filme em 2013. Parte de um desejo meu em conhecer a literatura de outros lugares do mundo, "O Fundamentalista Relutante" apresenta uma história acima da média que amplia a voz daqueles que nem sempre são ouvidos.

"Essas viagens me convenceram de que nem sempre é possível estabelecemos nossas fronteiras, depois que um relacionamento as embota e as torna permeáveis: por mais que tentemos, não conseguimos reconstituir-nos como os seres autônomos que antes imaginávamos ser. Algo de nós fica do lado de fora, e algo de fora passa a habitar dentro de nós." [p. 162]

Foto: Wolney Fernandes