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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A Boa Manhã*


Apenas passo os olhos pelos jornais; jogo-os fora, alegremente, porque eles pretendem dar-me notícia de muitos problemas, e eu não tenho nem quero problema nenhum.

Acordei um pouco tarde, abri todas as janelas para o sábado louro e azul, e o mar me deu bom-dia. Passa um pequeno barco branco no mar de safira: como vai ligeiro, como vai contente, com seu bigodinho de espumas brilhantes! Uma ave se detém um instante peneirando, depois mergulha na vertical em grande estilo; quando volta, um pequeno peixe brilha em seu bico.

Chupo uma laranja, e isto me dá prazer. Estou contente. Estou contente da maneira mais simples – porque tomei banho e me sinto limpo, porque meus braços e pernas e pulmões funcionam bem; porque estou começando a ficar com fome e tenho comida quente para comer, água fresca para beber.

Nenhuma tristeza do mundo nem de meu passado me pega neste momento. Tenho prazer em ver que a Ilha Rasa está lá direitinha, em seu lugar, com o farol branco. Vejo ao longe, saindo da praia, dois amigos; estão conversando e rindo. Tomaram seu banho de mar, vão almoçar; estou contente porque os amigos vão bem e suas mulheres esperam crianças. Saúde e prosperidade! Estou contente porque recebi uma boa notícia. Nada de extraordinário, mas uma notícia muito simpática.

Sei que o mundo está cheio de horríveis problemas – e eu mesmo, pensando bem, tenho alguns bem chatos. Mas não estou pensando neles; estou vivendo nesta fresca manhã um momento de bem-estar, de felicidade.

Ora, considerando que a felicidade é uma suave falta de assunto, eu me despeço de todos com um cordial bom-dia e vou almoçar. Não quero contar prosa, mas tenho arroz, feijão, carne, alface, laranja, pão, tudo o que um ser humano necessita para viver bem.

Um velho amigo vem honrar a minha mesa; falaremos com simpatia das mulheres bonitas desta formosa capital. Conversa de brasileiros! Bom dia, passem bem todos com suas mulheres, com seus amigos, com suas amantes também.


O texto é do Rubem Braga, mas nesta manhã fiz dele um tesouro só meu!
A foto eu encontrei no "Poeme-se"

(*) In, Rubem Braga. 200 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 118

Ela


Com fones no ouvido, eu caminhava pelos corredores do supermercado completamente alheio às pessoas que me cercavam enquanto conversava com alguém utilizando um aplicativo para celular. Absorto em minha conversa parecia um maluco empurrando o carrinho de compras, falando sozinho e escolhendo o palmito mais fresco.

Mas eu não era o único, afinal quem nunca sacou o celular para conferir um novo e-mail ou atualizações das redes sociais no restaurante, no cinema, na fila do banco, no ônibus, na cama, etc? Esta situação e tantas outras semelhantes e comuns nos dias de hoje é o que nos aproxima do futuro onde a história de Ela (Her, EUA, 2013) se passa.

Destaque seja dado ao belíssimo desenho de produção do filme que projeta um mundo “instagramizado” como bem definiu uma amiga fazendo referência a uma realidade filtrada por cores e camadas programadas para realçar só o que nos interessa.

A linha que o filme traça entre realidade e ficção é realmente nebulosa. Para entender isso basta ler a sinopse. Theodore (Joaquin Phoenix), um homem comum, com alguns poucos amigos, está passando por um doloroso processo de divórcio com a ex-mulher que ele ainda ama.


O moço solitário acaba procurando conforto – e encontra!!! - em um sistema operacional do tipo faz-tudo. Desenvolvido com inteligência artificial e voz de Scarlett Johansson, esse misto de secretária, amiga e namorada é batizado como Samantha e, aos poucos, passa a ser a solução perfeita para todos os problemas de Theodore que não consegue interagir com o meio social.

Aliás, sociabilidade não é bem a palavra para definir o modo como as pessoas interagem no longa. Quando Theodore anda pelas ruas, o que vemos são pessoas que - assim como ele no filme e eu no supermercado -caminham com um fone de ouvido conversando com seus próprios aparelhos.

Cada pessoa parece presa em um mundo particular com seus sistemas operacionais onde tudo é perfeito... ou quase, como nos deixa entrever o roteiro tão bem articulado de Spike Jonze que dirige o filme com maestria e sabe colocar o dedo na ferida dessa geração que caminha para esse futuro individualista que já está bem ali, pertinho de nós.

Dentre as tantas qualidades da obra, também merece destaque a trilha sonora composta por William Butler e Owen Pallett do Arcade Fire. O tom melancólico dá a exata medida para acompanharmos essa história de amor tão peculiar.



Ao se apaixonar por Samantha, Theodore inicia o que ele acha ser um relacionamento ideal, pois ela está sempre à sua disposição e, atuando em função dele, sabe exatamente como agradá-lo. Esse estado de eterna permanência se contrapõe aquilo que levou o casamento de Theodore ruir: o fato dele e da ex-mulher (Rooney Mara) terem mudado. Não é assim na vida real? Quando o outro se torna diferente daquilo que a gente estabeleceu como perfeito, tudo parece desandar.

O filme questiona o tipo de relações que queremos e que necessitamos para evoluir. Afinal, amar quem só concorda com a gente ou que nos serve é fácil. As relações humanas, no entanto, existem justamente para aprendermos com o que é diferente, com o que nem sempre nos agrada e com o que se volta difícil.

Por outro lado, Se Theodore ri do sarcasmo de Samantha, se preocupa com ela e fica angustiado quando eles não estão bem, estes sentimentos não seriam reais? E se forem reais, a relação também não seria? Enfim, questões profundas, bastante pertinentes para o tempo que vivemos e, por isso, tão inquietantes.

Eu acredito que filmes realmente bons são esses que permanecem com a gente, mesmo depois do fim. E se Ela me fez pensar nas diferenças entre comprar palmito hoje e há 10 anos atrás, já vale uma indicação. Pode confiar!



Texto publicado no "A Gambiarra"

sábado, 25 de janeiro de 2014

Fun Home


Nada sabia de Fun Home, a não ser a indicação de um amigo que, vendo minha empolgação diante da leitura de outras Graphic Novels (só no mês de janeiro eu li cinco HQ's) resolveu me emprestar o livro sem que eu pedisse.

E foi arrebatador me ver diante da relação que Alison Bechdel estabelece com o próprio pai, um homem distante e preocupado em organizar o mundo conforme seu olhar apurado, mesmo que, para tanto, precisasse passar por cima dos desejos da família.

A descoberta da própria homossexualidade de Alison, vai desfiando incertezas e revelando conflitos que ela tenta sanar em meio a lembranças dos dias em que passou com o pai antes dele se matar - E não! Isso não é spolier, pois a morte do pai é o que desencadeia esse retorno e já está bem no início da narrativa.

O modo como a autora alinhava às atitudes e traços da personalidade do pai ao seu amor por literatura é surpreendente! O livro é recheado de citações literárias tendo a obra de Marcel Proust como carro chefe para associações carregadas de humor e beleza.

Com um traço sensível, detalhista e uma escrita densa, Bechdel consegue traçar paralelos da própria história com as paixões que, por tanto tempo, ela repudiava ao vê-las descritas nas ações paternas. E só o amadurecimento vai lhe mostrando quão próximos eles foram e do quanto ela carregava do pai.

É lindo acompanhar essas descobertas. As últimas páginas são de uma beleza ímpar que até agora, quase 15 dias depois que terminei de ler, ainda me emocionam.

Há um outro livro em que a autora investiga a relação com a mãe, mas confesso que ainda não tive coragem de começar a leitura.

"Fun Home" é uma daquelas histórias que todo mundo deveria ter contato e, junto com Asteiros Polyp, já figuram como as leituras mais incríveis do último mês.
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Livro: Fun Home [5/5]
Autora: Alison Bechdel
Conrad Editora

Foto: Wolney Fernandes

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Noites de Alface


Da Vanessa Barbara eu conhecia o ótimo "O Livro Amarelo do Terminal" que eu devorei num fôlego só. Com uma escrita afiada e dona de um humor elegante, a autora conseguiu traçar um painel polifônico do dia a dia da Rodoviária do Tietê. Para quem não conhece, fica a indicação.

Foi com muita sede ao pote que eu cheguei a este "Noites de Alface" e ao ler o primeiro parágrafo (costume meu) fiquei tão impressionado diante da beleza e profundidade daquelas linhas que cheguei a reproduzi-las em minha timeline aqui mesmo no facebook, há alguns dias atrás. Vejam só:

"Quando Ada morreu, as roupas ainda não tinham secado. O elástico das calças continuavam úmido, as meias grossas, as camisetas e as toalhas de rosto penduradas do avesso, nada estava pronto. Havia um lenço de molho dento do balde. Os potes recicláveis lavados na pia, a cama desfeita, os pacotes de biscoito aberto, em cima do sofá - Ada tinha ido embora sem regar as plantas. As coisas da casa prendiam a respiração e esperavam. Desde então, a casa sem Ada é de gavetas vazias."

Profundo, né? Porém, apesar de um começo tão intenso, a história contada por Vanessa não mexeu tanto comigo. Talvez minha expectativa exacerbada tenha impedido de me deixar levar pelas lembranças de Otto em torno do vazio deixado pela esposa Ada.

Cada capítulo do livro apresenta um dos vizinhos desse casal peculiar que, embora sejam personagens muito divertidos, acabam por desviar, o foco da relação do casal de protagonistas. Opostos por natureza, Ada é toda espontânea e Otto é um velho ranzinza, mas que viveram um casamento repleto de cumplicidades.

Há também um mistério que envolve esses vizinhos que fica aparente frente as relações que são estabelecidas entre eles. No entanto, a explicação desse segredo me pareceu muito surreal para um livro de começo tão calcado na realidade de uma perda.

Enfim, é uma boa leitura com rimas narrativas muito bem construídas e a escrita da Vanessa continua deliciosa e cheia de detalhes que deixam a leitura bem divertida. Pena que a história não tenha a mesma força.
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Noites de Alface [3/5]
Autora: Vanessa Barbara
Ed. Alfaguara

Imagem: Wolney Fernandes

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Contaminações


Atrasado, saí da loja com as fotos nas mãos e os fones no ouvido. O sinal abriu para pedestres e eu tinha aquela faixa inteira só pra mim. Antes de atravessar, vasculhei minha lista de músicas à procura de Modern Love do David Bowie. Apertei o play. Respirei por dois segundos e atravessei a avenida e o próximo quarteirão inteiro correndo feito Francis Ha.

Cheguei no carro com sorriso no rosto e uma sensação de que a vida pode ser uma aventura cinematográfica.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Aos 7 e aos 40


"Aos 7 e aos 40" passou na frente dos livros que eu já estava lendo porque sua leitura é cativante e melancólica. Dessas que me pegam pelos detalhes e pelas incontáveis identificações.

Em duas narrativas, uma quando criança e outra já adulto, vemos o protagonista dizer adeus àquilo que separa o homem do menino.

Não conhecia o autor, mas fiquei impressionado com o modo como ele usa as palavras e faz combinações que nos puxa para a profundidade daquilo que ele descreve e tudo com muita delicadeza.

"Eu vivia entre as pessoas, as árvores, as casas. Não tinha aprendido ainda a viver na sua raiz, só saltava sobre seus galhos, no espaço entre uma e outra. Ignorava o que era voltar, eu só ia às coisas -era o meu tempo de começos. Pra mim havia o dia (a escola, os amigos, as brincadeiras) e a noite; mas a noite não era o fim do dia, a noite (o medo, o cansaço, o sono) era apenas uma escura hora antes de um novo dia.

Então foi que entendi, e, mais do que entender, eu senti o que era partir, quando num sábado, fui com meu pai, cinco horas de viagem, visitar o tio Zezo."


Uma história para quem gosta de olhar para trás para saber como continuar seguindo em frente. Triste, mas de uma beleza ímpar e íntima.

Tudo isso é ressaltado em um projeto gráfico incrível que divide as páginas do livro em duas narrativas: a infância na sua parte superior e vida adulta na sua parte inferior, estabelecendo uma cadência bem apropriada para a leitura.

Terminei o livro com uma vontade de escrever melhor.

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Aos 7 e aos 40 [4/5]
Autor: João Anzanello Carrascoza
Editora: Cosac Naify

domingo, 12 de janeiro de 2014

Maus


Nada me preparou para a leitura de Maus, essa HQ incrível sobre sobreviventes do Holocausto. Digo isso porque sempre me perguntei: O que ainda não foi dito ou escrito sobre as atrocidades vivenciadas pelos judeus por ocasião da Segunda Guerra Mundial?

Muitas coisas! É a resposta que Art Spiegelman nos dá ao narrar a história do próprio pai, um sobrevivente que conseguiu, com inteligência e um pouco de sorte, sair vivo dos horrores de Auschwitz. Dizendo assim, parece uma narrativa óbvia demais, mas não é! E não é porque o autor não se concentra apenas na parte histórica do relato, mas mostra, inclusive, a relação problemática que ele trava com o próprio pai, agora já idoso e cheio de manias.

Ao utilizar o recurso da metalinguagem com inteligência - na HQ, acompanhamos todo o processo de elaboração da mesma - o autor compartilha suas dúvidas, seus medos e expectativas em tornar público as dores do pai. Um filho tentando entender suas origens e mergulhando vertiginosamente na própria história.

O traço de Spiegelman é pesado e possui a densidade que a história sugere. É curiosa a escolha do artista em desenhar os judeus como ratos, os alemães como gatos, poloneses como porcos e americanos como cachorros. No entanto, na metade do livro há uma citação sobre o Mickey Mouse que justifica essa escolha de modo brilhante:

"Mickey Mouse é o ideal mais lamentável de que se tem notícia [...] As emoções sadias mostram a todo rapaz independente, todo jovem honrado, que um ser imundo e pestilento, o maior portador de bactérias do reino animal, não pode ser o tipo ideal de animal [...] Abaixo a brutalização do povo propagada pelos judeus. Abaixo Mickey Mouse! Usem a Suástica!" (artigo de jornal, Alemanha, meados da década de 1930).

Soco no estômago. Do princípio ao fim!
Tenha coragem e leia porque vale a pena!
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Maus [5/5]
Autor: Art Spiegelman
[Quadrinhos na Cia.]

Imagem capturada aqui

Histórias Reais


Para cada objeto ou situação uma foto, para cada foto, uma história.

Neste livro, a artista francesa Sophie Calle usa objetos do cotidiano para desfiar histórias e memórias trançadas à sua experiência como artista. Um roupão, um bilhete ou um bordado vão descortinando narrativas singulares sobre o modo como a autora enxerga o mundo.

Com uma escrita extremamente mordaz e carregada de ironias, Sophie consegue nos revelar intimidades e mostrar peculiaridades no modo como ela marca suas experiências com algum tipo de rito.

Em uma das melhores histórias ela encontra um bilhete do marido e tem uma surpresa, ao imaginar ser uma mensagem endereçada a ela:

"Continuei a ler de baixo para cima: 'Um dia você me perguntou se eu acreditava no amor à primeira vista. Eu cheguei a responder?'. Só que esse bilhete não era para mim: no alto havia um H. Risquei o H. e coloquei um S. Essa carta de amor passou a ser a que eu nunca recebi".

Provocativa e surpreendente, a artista consegue nos enredar pelas poucas páginas da publicação com amostras de uma vida vivida com uma intensidade invejável.


_____________ Histórias Reais [5/5]
Autora: Sophie Calle
Ed. Agir


Foto: Wolney Fernandes

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Borges e seus itinerários afetivos


Me interessei por Jorge Luís Borges ao ler "No meu peito não cabem pássaros" do escritor português Nuno Camarneiro. Nele, há um menino que olha o mundo de um modo muito peculiar e que foi inspirado em Borges. A identificação com o personagem foi tanta, que terminada a leitura do livro fui atrás de algo escrito pelo famoso escritor argentino.

Minha predileção por preambulações e itinerários afetivos me fizeram começar a leitura de Borges pelo livro Atlas. Uma espécie de mapeamento que o autor faz dos lugares que visitou na década de 80. E por lugares entenda cidades, esquinas, desertos, sonhos e até um brioche. Qualquer dispositivo que lhe incitava à escrita é registrado no livro que ele divide com María Kodama, cujas fotos também tecem narrativas e impressões sobre os caminhos percorridos pelo casal.

Borges herdou uma doença que ia lhe tirando as vistas na medida do seu envelhecimento. Desse modo, ler suas histórias e divagações acerca dos lugares explorados por seus toques, cheiros, sabores e sons, tornam a leitura de Atlas um desvelamento de pessoas, assombros e alegrias de um modo singular.

"Aqui sentimos de maneira inequívoca a presença do tempo, tão rara nestas latitudes. Nas muralhas e nas casas está o passado, sabor que se agradece na América. Não se exigem datas nem nomes próprios; basta o que sentimos de imediato, como se fosse uma música."

A escrita de Atlas abriu brechas, me fez desenrolar novelos de cotidianidades e deixou pontas soltas para que eu, como leitor, as atasse. Gosto assim, quando me sinto partícipe da narrativa. Há, ainda, uma dimensão poética tão forte no jeito que ele escreve os textos que os lugares vistos pelos "olhos" de Borges acionam inquietações breves, mas latentes sobre como pequenos gestos podem alterar a noção que temos de uma determinada realidade.

"A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide me inclinei, peguei um punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais adiante e disse em voz baixa: Estou modificando o Saara."

Se alguém ainda não conhece, recomendo a edição de capa dura feita pela Cia das Letras que é graficamente deslumbrante na mesma medida das palavras e imagens que a narrativa apresenta. Atlas foi pra mim uma porta de entrada para uma literatura que eu quero explorar para descobrir cada vez mais sobre mim mesmo.

"Não há um único homem que não seja um descobridor. Ele começa descobrindo o amargo, o salgado, o côncavo, o liso, o áspero, as sete cores do arco-íris e as vinte e tantas letras do alfabeto; passa pelos rostos, mapas, animais e astros; conclui pela dúvida ou pela fé e pela certeza quase total da própria ignorância."

Foto: Wolney Fernandes

Opções de ano novo


Esqueçam as passas e o champagne, os desejos e as cuecas brancas. Para mim o ano muda no exato dia em que, ao voltar para casa, percebo que nada de importante está diferente. Exceto minha alegria. Tão bom deixar as frustrações do dia no banco da praça e continuar o caminho. É assim que eu sei que o tempo passou e que eu, tal como as águas de um rio, estou cada vez mais igual, cada vez mais diferente.

Moderar as exigências não é, necessariamente, contentar-se com pouco. É aprender a enxergar as próprias limitações e, com isso, identificar o que me aprisiona no vale das lamentações e medir o trabalho necessário para que as coisas cheguem no devido lugar.

Tendo, neste janeiro de atropelos e pequenas alegrias, sempre optar pela felicidade.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O taxista


Coloquei o cinto de segurança e ao indicar o destino ao taxista, percebi que o conhecia. Mas de onde? Traição tamanha essa da memória que reconhece, mas não localiza. Passei o restante do trajeto assim, num jogo de 'pega-pega' com aquele rosto que, embora mais velho, me pareceu familiar.

Já perto do meu prédio, arrisquei: "Tenho a impressão que conheço o senhor de algum lugar", mas a resposta me veio bem evasiva como eu já suspeitava: "Como motorista de táxi eu já transportei muita gente. Deve ser isso." Seguimos calados o restante do trajeto.

Depois de pegar minha bagagem no porta-malas do carro, ele me disse o valor da corrida e, ao retirar a carteira do bolso para pagá-lo, a memória funcionou como deveria. O ano era 1999. Segunda-feira, segundo dia da segunda fase das provas do vestibular da UFG. Eu estava desacreditado do meu desempenho nas avaliações do dia anterior e tinha um plano secreto: não fazer as provas do segundo dia porque, do alto da minha descrença e falta de confiança, eu já tinha proclamado a minha reprovação. O plano era seguir para outro local, passar o tempo com alguma atividade mais prazerosa do que me afundar em provas e voltar pra casa no final do dia como se tudo tivesse acontecido conforme manda o protocolo.

No caminho até o ponto de ônibus, sem saber direito ainda pra onde ir, resolvi fazer a tarde ficar mais divertida. Me lembro de ter cerca de trinta reais na carteira. Calculei que gastaria metade daquela fortuna pegando um táxi e pedindo que o motorista me deixasse em qualquer lugar da cidade até que o taxímetro marcasse quinze reais. Peguei um táxi do ponto perto da minha casa no Setor Universitário e fiz o pedido ao motorista.

Ele ficou meio desconfiado, sem saber para onde seguir, mas pôs o carro em movimento enquanto questionava a razão do meu pedido. Para diminuir um pouco da desconfiança que eu já via refletida no modo como ele fez a pergunta, decidi contar a história toda. Ele ouviu tudo sem dizer nada e depois de um breve silêncio só perguntou onde seriam as provas. Eu respondi já satisfeito por conseguir contar com a cumplicidade dele na realização da primeira parte do meu plano.

Meu mundo caiu quando vi que o taxímetro ultrapassou o valor que eu tinha previsto e ao pedir que ele parasse o carro, ele não obedeceu. Um medo percorreu minha espinha inteira e na minha vez de desconfiar do plano secreto do motorista insisti que precisava descer. Recém chegado a Goiânia, eu não conhecia direito a cidade e, para minha surpresa, ele parou bem em frente ao local das provas e ordenou: "Desça e faça a prova!"

Havia tanta convicção naquela sentença que eu paguei os quinze reais sem dizer nada [a corrida tinha dado um pouco mais] e saí do táxi ainda surpreso com a atitude daquele senhor desconhecido. Dei de ombros e entrei pelos portões. Fiz as provas.

A notícia da minha aprovação, meses depois, veio acompanhada da vontade de agradecê-lo e até tentei fazê-lo, num dia que passei perto do ponto de táxi onde ele ficava. Não tive sucesso porque nunca o encontrei novamente. Tinha se mudado para Anápolis, conforme me esclareceu um colega de profissão.

15 anos depois, em uma corrida do aeroporto para casa, reencontro o motorista e para confirmar minhas suspeitas, ao entregar o dinheiro da corrida perguntei: "O senhor já trabalhou em um ponto de táxi na rua 242 no Setor Universitário?". O telefone dele tocou e já fazendo a manobra para ganhar a avenida ele me disse que sim e, preocupado em responder a chamada e acelerar antes do sinal fechar, foi embora sem ouvir o obrigado que eu pronunciei por duas vezes parado na calçada.

A foto eu achei aqui.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O Sentido de um Fim


"Sempre achei que o paraíso seria uma espécie de biblioteca" 
[Jorge Luís Borges]

Ano passado eu li bem pouco. Neste ano, desejo mudar essa estatística para que os livros que sempre me acompanharam saiam dos acúmulos da estante para repousarem em arrepios que me tirem do lugar. Comecei com um livro do Julian Barnes.

O Sentido de um Fim conta a história de Tony Webster, um homem cujas lembranças se desfiam entre lacunas e reflexões acerca de como a memória pode ser irônica, imperfeita e permeada por subjetividades na [re]construção de um passado, mesmo que seja o seu próprio.

"Quantas vezes nós contamos a história da nossa vida? Quantas vezes nós a ajustamos, embelezamos, editamos espertamente? E quanto mais longa a vida, menos são os que ainda estão por perto para nos contradizer, para nos lembrar que nossa vida não é a nossa vida, mas a história que nós contamos a respeito da nossa vida. Contamos para outros, mas - principalmente - para nós mesmos."

Tony tem sessenta anos e relembra fatos marcantes da amizade com Adrian, um garoto inteligente na época do colégio e de uma namorada que volta a atravessar seu caminho depois de 40 anos. Só descobrimos o porquê dessas lembranças lá no meio da história quando Tony recebe uma carta que o conduz a uma reflexão vertiginosa acerca dos fatos narrados na primeira metade do livro.

Creio que não saber o porquê da seleção daquelas lembranças, me deixou, à priori, um pouco decepcionado com o começo da narrativa quando eu me perguntava porque ele não se aprofundava em nenhuma das memórias e pulava partes que eu, gostaria de saber. No entanto, quando a sombra daquela amizade volta a encobri-lo, o livro ganha uma profundidade que eu achava impossível caber nas 160 páginas que compõem esta edição da Editora Rocco.

As dúvidas e os arrependimentos são postos à prova a cada nova revelação. E cada uma delas nos conduz a reflexões sobre nossas próprias decisões e consequentes arrependimentos. Não foram poucas as pausas que eu precisei fazer diante de determinados trechos onde transferi os questionamentos do protagonista para mim mesmo:

"Quanto menos tempo de vida lhe resta, menos você quer desperdiça-lo. [...] Como empregar as horas economizadas?"

Com um humor afiado, o autor britânico Julian Barnes vai recheando a narrativa dessas memórias com ironias do tipo: "O casamento é uma refeição comprida e sem graça onde servem o pudim primeiro". O enfoque na história do protagonista, faz com que as outras personagens não passem de meras lembranças. Eu gostei bastante do livro, embora ao terminá-lo a vontade de me aprofundar mais em cada um daqueles personagens complexos e pouco explorados tenha ficado para além do fim.

Foto: Wolney Fernandes

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Cantiga


Cantiga é um livro com rimas visuais. A história nada mais é do que o caminho que se faz entre a casa e a escola e as possibilidades que se descolam da imaginação de quem faz um mesmo trajeto cotidianamente.

Dessa vontade de imaginar, surgem desconhecidos, bruxa, feitiço, ponte e até uma rainha que, a cada volta, deixam o caminho cada vez mais incrível.

O livro é uma lindeza sem fim com ilustrações que lembram manchas gráficas pontilhadas e uma tipografia que é um verdadeiro convite para a gente também interferir nesse caminho e brincar com nossos próprios caprichos. Em algumas páginas você pode escolher o que escrever num exercício bacana de ficar à deriva de nossa imaginação.

Cantiga [4/5]
Autor: Blexbolex
Editora: Cosac Naify

Asterios Polyp



Comprei essa HQ há um ano atrás e ainda não tinha lido. No final de semana eu comecei a ler e fiquei fascinado pela história de Asterios, um arquiteto academicamente renomado, que perde tudo o que tinha quando um raio atinge seu apartamento.

Dessa perda, nasce a possibilidade de um recomeço trabalhando como mecânico e de uma revisão de vida para entender o que deu errado naquela trajetória aparentemente bem sucedida.

E são nestas memórias de Asterios que estão os momentos mais bonitos da história, desde o começo da relação dele com a ex-mulher, passando pela carreira que ele construiu em torno de projetos arquitetônicos que nunca saíram do papel.

As soluções gráficas que o autor utiliza para enfatizar as emoções dos personagens são geniais e vão desde a utilização de diferentes tipografias para as falas até a mistura de cores que, a cada lembrança e a cada cena, nos ajudam a mergulhar na história.

Gostei bastante, principalmente porque é uma crítica consistente de quem vive sobrepondo teorias sobre a experiência (cof! Acadêmicos, se mordam! cof!). Mas a força maior da história reside nos gestos que repetimos cotidianamente e que compõem o tecido que recobre essa tal felicidade que tanto almejamos.

Recomendadíssimo! Um dos melhores livros que eu já li!
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Asterios Polyp [5/5]
David Mazzucchelli
Quadrinhos na Cia.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Quereres, mentiras e desatinos de ano novo


Todo princípio de ano eu suspeito dos meios, mas nunca tenho ideia dos fins. Não é de hoje que meus desejos se transmutam em realidades que nem sempre dão conta das vontades todas. Considerando que a única constante da vida é a certeza da mudança, faço dessas resoluções de ano novo desatinos primeiros que levarão a desatinos segundos ou até a mentiras que foram sonhadas como verdades nos primeiros dias de janeiro.

Apesar de gostar de listas, a vida não pode reduzir-se a prioridades que a gente vá simplesmente riscando e passando aos itens seguintes. Descabida que só, a vida transborda para além das nossas tentativas de dobrar o tecido do universo com as mãos. Há porém, um conselho dado pelo gato à Alice - aquela do País das Maravilhas - que me faz refletir: "Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve". Felizmente já tenho idade suficiente para saber que não quero seguir qualquer caminho. E nem tenho tempo para tal aventura [ah, meus vinte anos...].

Gosto de saber que priorizar metas me ajuda a focar esforços e a diminuir ansiedades. O exercício proposto aqui nem se trata de resoluções grandiosas ou mudanças bruscas, mas da certeza de que recomeçar é muito bom, mesmo que seja só para desfiar continuidades, dia após dia. Nada de página em branco, pois todos os hábitos, conhecimentos e obrigações continuam valendo e, talvez os cinco quilos que eu preciso perder fiquem aqui, mas a brevidade da vida me traz quereres assim:

Sobre o tempo e aqueles caprichos
1. Fazer pausas, ter tempo de olhar para o tempo. Reservar os finais de semana para gastar com vontades e atividades outras que não tenham relação direta com o trabalho semanal. Parar durante o dia para ouvir aquela música que eu adoro ou olhar para o movimento da rua, lá fora.

2. Procrastinar menos, me organizar para as ideias renderem ações e ter respostas rápidas para os e-mails que se acumulam ou as questões que precisam de encaminhamentos.

3. Priorizar meu trabalho artístico e valorizá-lo na medida da minha experiência pessoal, entendendo-o como possibilidade de atuação dentro e fora dos espaços acadêmicos. Viabilizar o projeto e a publicação de um livro meu.

Sobre os acúmulos desnecessários
4. Ler os livros que eu já tenho antes de comprar novos. O mesmo vale para os filmes que adquiri, mas que ainda não assisti.

5. Fotografar menos. Vivenciar as experiências antes de querer registrá-las com fotos.

6. Não trocar o guarda-roupa, mas fazer minhas roupas caberem em três portas.

7. Cuidar melhor dos meus gastos. Gerenciar o que entra e sai da minha conta com mais propriedade e, quem sabe, fazer um fundo de reserva para viagens e outros prazeres do tipo.

Sobre autoconhecimento e essa tal felicidade
8. Prestar atenção nas pessoas que me ajudam na árdua tarefa de me conhecer melhor, pois todo processo de autoconhecimento passa também pelo/a outro/a.

9. Aprender a cozinhar. Substituir doces por frutas e, às vezes (só as vezes), fazer o contrário!

10. Fazer exercícios físicos, nem que seja uma caminhada. Sempre que possível, andar a pé. Dormir mais. Optar por ficar mais tempo diante de mim mesmo do que diante de uma tela de computador.

11. Dizer "não" sem sofrer e buscar derramar o que sinto na medida da minha vontade, sem sufocá-la.

12. Olhar para as pessoas que encontrar. Ser cordial e cortês, mesmo em situações complicadas. Crer.

E se ao final de 2014, nada disso fizer sentido, continuar acreditando nos sentidos que existem em cada recomeço... a cada dia.

Feliz 'hoje' pra todo mundo!

Imagem de Vânia Mignone. Peguei aqui.