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domingo, 18 de maio de 2014

"Somos todos Silvas"


Valter Hugo Mãe merece todos os louros que sua obra vem recebendo mundo afora. Com uma escrita incrivelmente fluida, o autor consegue acessar sentimentos há muito guardados. Em “A máquina de fazer espanhóis” acompanhamos a história do Sr. Silva, um velhinho que após perder a esposa - em uma das passagens e descrições mais tristes do mundo - vai morar em um lar para idosos “com dois sacos de roupas e um álbum de fotografias”.

A princípio, as dores sentidas pelo Sr. Silva fecham sua disposição para compartilhar a vida com as outras pessoas em sua nova casa. No entanto, aos poucos, ele se abre a novas amizades e o lugar onde ele via só um ponto final começa a se revelar um universo complexo com vírgulas e continuações.

Parte desse processo de abertura se deve às amizades que ele acaba firmando com outros velhinhos. De longe, os coadjuvantes mais incríveis que eu já vi. Dentre eles, o Esteves, aquele do poema “Tabacaria” do Fernando Pessoa que salta dos últimos versos para a realidade daquele lugar plantando "metafísicas" em cada canto.

“Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
[Álvaro de Campos]


É bonito demais acompanhar as descobertas e frestas que se abrem em um peito, à priori, tão fechado:

“nunca eu teria percebido a vulnerabilidade a que um homem chega perante outro. nunca teria percebido como um estranho nos pode pertencer, fazendo-nos falta. não era nada esperada aquela constatação de que a família também vinha de fora do sangue, de fora do amor ou que o amor podia ser outra coisa, como uma energia entre pessoas, indistintamente, um respeito e um cuidado pelas pessoas todas.”

Traçando paralelos poéticos entre um amigo e outro, escrevendo cartas de um amor imaginário ou confrontando seus desejos antigos com os atuais, o personagem principal do livro é complexo e nos lança a uma jornada rica em questionamentos que nos fazem olhar para quem somos ou para quem deveríamos ser. Além desse exame interior, há ainda uma forte crítica aos entupimentos impostos pela Igreja, pela ditatura ou qualquer outra regra e instituição que prive ou limite a vivência da liberdade que almejamos.

“quem se senta na cadeira do papa, cada novo papa, entra na verdade numa longa linhagem de assassinos. deviam ter vegonha. e as pessoas esperam de um homem assim a salvação de todos os povos e não se lembram que a tradição da casa é a discriminação atroz e a perseguição até à morte. veja como se vestem. parece que vestem cortinados como se fossem uns maricas de circo a mostrar que são capazes de equilibrar estes disparates nas cabeças.”

A não utilização de maiúsculas e o abandono dos sinais para marcar falas e expressões só assusta nas primeiras páginas e depois a leitura flui que é uma beleza. Acaba que esse recurso estilístico não impede nosso envolvimento com a história. Há um só capítulo no livro onde a escrita se utiliza desses recursos, mas eu só fui perceber isso porque, depois de terminada a leitura, acabei vendo resenhas sobre a obra e alguém chamou a atenção para esse fato.

Perto das últimas páginas eu comecei a lamentar que o final do livro estivesse próximo, pois meu desejo era saborear por mais tempo a vida pulsante do lado de dentro do Lar Feliz Idade. Já é, sem sombra de dúvidas, um dos meus livros favoritos da vida!

Foto: Wolney Fernandes