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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Caprichos de agosto


01. Dez dos 13 trabalhadores uniformizados limpam o canteiro da faculdade. Ao lado, os outros três fazem piquenique na relva.

02. Na livraria, o pai carrega a filha nos braços enquanto o filho mais velho corre entre as prateleiras. A mãe vê a correria e ralha com o menino. O pai pede que a mãe deixe o pequeno em paz. Zangada, a mulher lança um olhar frio para o marido e se dirige ao caixa sem olhar para trás. Ao vê-la se afastar, o pai chega bem próximo ao filho e sugere, carinhosamente, que ele escute o pedido da mãe. 

03. Recebo a seguinte mensagem no celular: "Que mundo é esse onde as lojas de brinquedo tem mais artigos de Patati Patata do que de Star Wars?!"
- Não sei, Ana, não sei! Que a força esteja com você!

04. Ele está com um dos pés para fora do carro e olha para ela como se esperasse uma resposta de uma pergunta inaudível. Ela chora sem conseguir disfarçar a briga que acaba movimentando a mesmice do estacionamento.

05. O grupo faz tremular bandeiras do candidato à prefeitura no cruzamento da avenida. A mulher de vestido estampado dança, rodopia e se destaca pela alegria e entusiasmo no final do dia.

Imagem: "Piquenique na Relva" de Manet

domingo, 26 de agosto de 2012

Eu quero ter um milhão de amigos*


Atualmente, 844 é o número de amigos que tenho no facebook e, amiúde, tem sempre alguém que se espanta com esse número. É claro que o espanto vem sempre seguido daquele discurso da seleção [nem tão natural assim. Te cuida, Darwin!] que as pessoas, mesmo sendo parte da rede, insistem em proclamar: "só adiciono quem eu conheço" ou mesmo "sou muito seletivo e só tenho no facebook as pessoas com as quais eu interajo na vida real"... hã?

Os mais radicais [segura essa!] promovem "festivais de unfollow" e se dedicam por horas a fio ao ato soberano de dar um "block" em quem não está interagindo [entenda por interação "curtir"e ou "comentar"] suas postagens. Interajo na medida que vejo e, as vezes, nem é preciso dar um like para que a interação aconteça. 

Por que essa nossa mania besta de querer transferir para as redes sociais as estruturas da vida real? Talvez quem pense assim tenha se esquecido de que a vida é descabida por natureza e, por isso, não cabe em lugar nenhum. No facebook, muito menos! Lá eu quero mesmo é ver e fazer o que nem sempre é possível do lado de cá da tela.

Quero mergulhar, encontrar e ser encontrado nesse mar de gentes. Espalhar pensamentos meus como quem joga papéis pela janela, poder falar com pessoas que moram do outro lado do mundo e brincar de viagem no tempo proporcionada pelos fusos horários mais variados. Quero ver paisagens da Tailândia, colecionar imagens de calendários antigos e me emocionar com frases prontas da Clarice Lispector. E se para tanto eu precisar de um milhão de amigos [Te cuida, Roberto Carlos!], que seja!

[*] Título retirado da música do Roberto Carlos.
Imagem capturada aqui

sábado, 25 de agosto de 2012

Confrontos


O vinho circulava em pequenas taças que tilintavam a cada novo brinde. Um breve esquecimento do mundo foi um direito que julguei merecer. A cada gole, fechava os olhos buscando o sabor imediato daquela ausência de mim que eu tanto almejava.

Desprovido do gosto dos esquecimentos, a cada conversa posta na roda o amargo da realidade se misturava ao doce do vinho tinto. Viagens ao redor do mundo me levavam de volta aos abarrotamentos do meu quarto. Amores derramados por anos a fio preenchiam meu coração vazio com os fracassos dos meus próprios afetos. Sucessos profissionais me lembravam o suor que derramei para cruzar a linha de chegada em terceiro lugar. Projetos para o futuro apontavam os espaços em branco do meu presente que não se ausenta.

Olhei para as migalhas de pão em meu prato e me juntei a elas. Naquela noite, não houve brechas em minha realidade por onde a alegria pudesse entrar. Ali, em meio aquela celebração profana, a vida me confrontou.

Imagem de James Gallagher. Olhei aqui.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Promessa


* Citação da música de Oswaldo Montenegro

Exercício de imaginação


Imaginar? tudo bem, vamos lá!
Eu seria uma dessas pessoas que sempre sabem onde estão, que se localizam olhando as estrelas sem dar trela para a voz do GPS. Meu pulsos, mais largos, ostentariam tatuagens desenhadas com escritas e eu nunca teria preguiça de fazer a barba.

Eu jamais guiaria um carro e não teria tanta raiva escondida aqui dentro. Eu teria tempo e um cinema inteiro só pra mim. Teria mais talento e menos vocação. Eu seria uma dessas pessoas que pensam depois de fazer. Usaria chapéu de côco e saberia colocar as vírgulas no lugar certo.

Eu faria jardinagem ou teria alguma outra atividade aristocrática. Não teria pesadelos. Teria um balanço na sala e um poster de "Volver" no quarto. Não aturaria desaforo nunca e só usaria camisetas com estampas de insetos.

Eu saberia fazer pratos de comer com os olhos e a academia seria o lugar do prazer. Acreditaria em tudo que não creio mais e nunca teria me apaixonado pela Julie Delpy.

Imagem capturada aqui.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Desejo de uma tarde de quinta

Eu queria mesmo era morar dentro desse filme.



E olha que ainda nem comecei a falar da Nina Simone.

Respostas


Porque uma boa história é a melhor coisa que pode nos acontecer em qualquer dia da semana, em qualquer semana do ano.
Porque é uma delícia poder acreditar, ainda que só por uma hora e meia, que o amor não termina mesmo quando chega o fim, que o talento será compensado e que teremos coragem para fazer tudo o que o coração pede.
Porque cremos, raspados de várias camadas de dor e ceticismo, que um dia vamos encontrar nossa vocação.
Porque as distâncias, mesmo atravessada por fronteiras, tem cheiro de cartas, abraços demorados e mensagens infinitas.
Porque enquanto o sinal não fica verde, revelações metafísicas nos assaltam.
Porque nunca é tarde demais para outra colher de doce de leite.

Foto: Wolney Fernandes
Desenho de Iberê Camargo

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Dezessete de agosto de 2012 - Sexta


No meio do dia eu entrei na sala de cinema com desejo de nunca mais sair.
No meio da tarde, eu saí da sala de cinema com desejo de voltar. 
Voltei!
No meio da segunda sessão: "Só se vive uma vez. Quantas oportunidades nós temos?"*
No fim das minhas inquietações pela fuga no meio do expediente: "Foda-se!"*

Imagem: Wolney Fernandes
Trechos do filme 360

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Intervalos entre capas e conteúdos


O nome do Pe. Fábio de Melo na capa não inspirava nenhum tipo de motivação para que meu interesse se fixasse naquele livro. Ao contrário, sempre fujo dessas armadilhas literárias orquestradas por padres fábios, marcelos e afins.

A capa também não era lá um exemplo de bom design. Sim, sou ávido praticante de buscas por capas inspiradoras. Encantado com a beleza da casca, já mergulhei em muitas histórias sem sabor. Mas não era o caso. Um passo vacilante fez meu interesse se fixar no título da publicação - "Orfandades - o destino das ausências" - e foi exatamente isso que me fez parar.

Estava na rodoviária de Brasília, o que já me garantia uma certa folga em relação ao anonimato. Tinha cerca de 20 minutos antes da chegada dos amigos que iriam me buscar no local. Mesmo assim, cautelosamente, espiei no entorno antes de pegar o livro da prateleira. Não podia correr o risco de ser confundido com um desses fiéis lambedores de tudo que padres fazem, cantam ou escrevem. Mesmo já tendo sido um desses fiéis no passado, em minha fase so cool não caberia tais carolices.

Li o texto da quarta capa. Gelei. O trecho me arrebatou de imediato, pois descrevia identificações muito caras a sentimentos já vivenciados no passado e, para piorar, o conteúdo era embalado no que eu considero uma boa escrita. Corri para o sumário na esperança de que ele me libertasse daquela identificação inicial e tropecei em um pequeno trecho inicial:

"[...] Ousei ver de perto o desconforto dos que não negligenciaram o assombro dos breus. Deite a toalha branca sobre a mesa. A crueza literária está posta. Este livro é filho das saudades."

Novo arrebatamento e eu, já desesperado, não sabia como largar aquele livro de novo na prateleira. Olhei novamente ao redor e ponderei silenciosamente com meus botões: "Calma, Wolney! Não se apegue a estas breves palavras. Comprar esse livro só vai evidenciar ainda mais as incoerências que você faz questão de esconder."

Fazendo pose de cara mais coerente do mundo, abandonei o livro entre os outros, saquei meu iPhone do bolso e fui postar e curtir fotos no Instagram porque é isso que os caras descolados fazem. Meus amigos chegaram e o final de semana transcorreu entre risos, sabores, encontros e um certo desconforto. Sim, minha suposta coerência tinha sido posta a prova por um livro do Pe. Fábio de Melo.

Na volta, pensei em comprar o livro juntamente com uma revista porque se a moça do caixa me perguntasse ou fizesse olhar de reprovação, haveria sempre uma possibilidade de dizer que a revista era pra mim e o livro uma lembrança para minha mãe. Benditas sejam as mães! Cult, Bravo ou Select seriam bons títulos para evidenciar a [também suposta] distância entre as duas publicações e me livrar desse suposto constrangimento.

No final das contas, a fome falou mais alto e, por precisar ficar na fila para comprar um lanche antes de embarcar, acabei voltando para Goiânia sem ter tempo de passar pela livraria. Foi na viagem de volta que me dei conta de que, outra vez, estava eu naquela tentativa ridícula de parecer uno, centrado, coerente, preciso e locado em um pólo apenas. A verdade é que sou "erudito e popular na mesma toada"como um amigo bem escreveu a esse respeito e que vivo passeando, o tempo inteiro, entre um pólo e outro.

Comprar livro pela capa, mesmo odiando o conteúdo como eu já fiz várias vezes, me pareceu tão mais vazio do que o contrário dessa equação. Se o livro do Pe. Fábio de Melo havia me atravessado pela escrita, que mal haveria em considerar isso como parte dos meus gostos e afetos? Desconsiderar o conteúdo que me tocou em função de uma pseudo erudição que se finda nos meus en(cantos) subjetivos é besteira que não quero ficar repetindo por aí.

Na chegada, tratei de garantir meu exemplar do livro, encarando a atendente da livraria para perguntar: Você tem o livro novo do Pe. Fábio de Melo? Sorrisos fartos. Ela tinha! Se o livro é realmente bom ainda não sei dizer. No entanto, sigo aprendendo a prestar mais atenção naquilo que meus olhos não se fixavam antes e me deixando atravessar por palavras que me arrepiem os poros e que fazem minha boca ter sede de escrita.

[O tal trecho da quarta capa]
"Era assim. Na escuridão da noite eu procurava o corpo paterno. Aconchegava-me ao seu lado e punha atenção no compasso de seu respiro de homem. A tudo eu contemplava. A voz grave, a postura de quem não conheceu as delicadezas do mundo, a exata medida das mãos que minhas mãos gostariam de ter, tudo observado em silenciosa admiração. A barba cerrada, o olhar capaz de enxergar-me no escuro, o alívio do medo, a devolução da vida. Meu pai e seu mundo profundo. Eu e meu mundo de estreitezas. Ele, na liberdade de estradas que não conheciam destino nem fim. Eu, na solidão de paredes sensatas, prova de que os laços de sangue podem nos privar das alegrias, ocultando-nos em abrigos inóspitos onde prevalecem as pregas da cortina que nos desprotege sem piedade."

Foto: Wolney Fernandes

domingo, 12 de agosto de 2012

No meio do canteiro central


Noite de sexta. Ela passa por mim apressada. Ele desce da moto do outro lado da avenida. O encontro explodindo faíscas aquece a noite fria. No meio do canteiro central eles matam as saudades com beijos e doçuras inaudíveis.

Imagem capturada aqui

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O tipo de foto que eu gosto!


Sabe quando a gente lê um texto e se impressiona com o jeito da escrita e com as ideias que ele carrega? Foi assim quando topei com o fanzine "Oh Oh!", criado pela Dani Arrais e pelo Claudio Silvano. Ao explicarem o tipo de foto que eles gostam, me senti contemplado em forma e conteúdo! Escolhi reproduzir o texto aqui para que minha voz se una a deles ao explicar que:

"A gente gosta de foto errada. Com enquadramento torto, luz estourada e com aquela textura que só é possível com o negativo. Foto de gente normal, sem cara de capa de revista, sem corpo de quem malhou horas no Photoshop. A gente gosta de imagem que emociona, que não precisa ser tecnicamente perfeita para encher os olhos. A gente gosta de simplicidade. De ter uma câmera nas mãos para captar um momento do dia, da vida ou do coração. A gente gosta de registrar pedacinhos do mundo que nem sempre ganham os holofotes. Aquele carrinho de supermercado esquecido no canto, a cara de sono que chega a ter um tracinho do lençol. A gente gosta de simplicidade. De verdade. E de fotos bonitas."

Foto: Wolney Fernandes

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Puxadinho de um sonho só


Tá certo que a vida adulta é uma delícia. Também já consegui entender que, na impossibilidade da volta, é preciso aprumar os ombros, riscar a linha do horizonte com o olhar e caminhar. Então, porque essa sensação de que antes o rumo traçado era mais nítido e, portanto, mais fácil de se chegar a um ponto? Antes, era só olhar adiante que o objetivo estava lá, reluzindo ao sol feito espelho rebatendo luz: terminar os estudos, conseguir lugar pra morar, alguém para amar, viajar para lugares desconhecidos.

Agora é diferente. Olho adiante e já não consigo definir com precisão uma indicação de trilha e, pior, não consigo sequer um sinal que indique uma linha de chegada. O que existe é um emaranhado confuso onde todo dia é dia de trabalhar para dar conta das contas. Toda tarde é tarde de ponderar as vontades e amargar uma hora inteira na academia. Toda noite é noite de me torturar por não conseguir dormir mais cedo.

Arrumar armário para que as as meias caibam do lado das cuecas, deixar o carro pra lavar no intervalo do almoço, ser inteligente e bom de cama para dar conta dos amores sem rotina. Responder a todos os e-mails que insistem em abarrotar a caixa de entrada na velocidade de 140 caracteres. Rebolar para que os demônios internos continuem relapsos e não retornem à tarefa decadente de me tirar dessa rotina felizzzzzzzzz...

A vida de tantos sonhos plantados no horizonte, ficou difusa e virou puxadinho de um sonho só: sobreviver para ter tempo de olhar o tempo passar.

Imagem capturada aqui.

Dúvidas iniciais


Dos tantos livros que ficam ali no canto à espera que meus olhos passeiem por suas páginas, eu sempre escolho cinco para ler os primeiros parágrafos e, assim, decidir qual deles será a próxima leitura de cabeceira. Desta vez ficou difícil escolher. Alguém me ajuda?

A Contadora de Filmes - Hernán Rivera Letelier
"Como em casa o dinheiro andava a cavalo e a gente andava a pé, quando chegava um filme no acampamento da Mina e meu pai - só pelo nome do ator ou da atriz principal - achava que parecia ser bom, as moedas eram juntadas uma a uma, o preço exato da entrada, e me mandavam assistir. Depois, ao voltar do cinema, eu tinha de contar o filme para a família inteira reunida na sala."

Diário da Queda - Michel Laub
"Meu avô não gostava de falar do passado. O que não é de estranhar, ao menos em relação ao que interessa: o fato de ele ser judeu, de ter chegado ao Brasil num daqueles navios apinhados de gado para quem a história parece ter acabado aos vinte anos, ou trinta, ou quarenta, não importa, e resta apenas um tipo de lembrança que vem e volta e pode ser uma prisão ainda pior que aquela onde você esteve."

Dois Rios - Tatiana Salem Levy
"Foi a Marie-Ange quem me salvou. Se é que isso existe, a salvação. Antes do nosso encontro, eu estava presa a casa e a tudo o que ela encerra: a umidade, o mofo, as fotografias desbotadas, a loucura da minha mãe e o silêncio. Sobretudo o silêncio, e com ele o medo e o passado a impedir que eu descobrisse o mundo. Quando a Marie-Ange chegou, eu entendi que podia começar de novo, sob outro prisma, retomar o que era meu e tinha ficado lá atrás. Mas foi preciso que ela chegasse, vinda de fora, uma aparição."

Vermelho Amargo - Bartolomeu Campos de Queirós
"Mesmo em maio - com manhãs secas e frias - sou tentado a mentir-me. E minto-me com demasiada convicção e sabedoria, sem duvidar das mentiras que invento para mim. Desconheço o ruído que interrompeu meu sono naquela noite. Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo. A vida me pareceu inteira concluída. Inventei-me mais inverdades para vencer o dia amanhecendo sob névoa. Preencher um dia é demasiadamente penoso, se não me ocupo das mentiras."

O Sentido de um Fim - Julian Barnes
"Eu me lembro, em ordem aleatória:
- do brilho da face interna de um pulso;
- do vapor subindo de uma pia molhada quando se joga alegremente uma frigideira quente lá dentro;
- de gotas de esperma girando em volta de um ralo, antes de serem tragadas e descerem pelo cano de uma casa alta;"

Imagem capturada aqui.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Sobre altares, reformas e apagamentos


As asas eram de renda vazada e não serviam para voar. Mas quem precisa voar quando os pés já tocam o céu? No meu paraíso particular eu dividi o altar com São Sebastião tendo flores de plástico ao meu redor e arcos ogivais ornados com bandeirolas ao fundo.

O azul da veste parecia encomendado à mais caprichosa costureira para fazer par com os ornamentos daquele altar de encantos, reentrâncias e brancuras. Pecado era pisar naquele céu de branco anil da toalha tão bem cuidada pelas mãos de Dona Cândida. Mesmo assim, ali estava eu, com dois anos, empoleirado no paraíso, embrenhado em atenções e ornado com fita de cetim.

Da minha ascenção ao céus eu me lembro pouco. Precisei das memórias da minha mãe para refazer todo o percurso que circunda a foto que abre este texto porque minhas lembranças estão todas plantadas em terrenos bem mais profanos. Aos pés desse mesmo altar, meus joelhos se dobraram várias vezes ao longo da minha infância e juventude. Tentativas vãs, hoje eu bem sei, de outra vez ter um par de asas que me autorizasse novo pouso no altar do Divino.

Sobre esse mesmo altar também ofertei flores a Virgem Maria, encantado com o significado dado a cada uma delas pelos versos tão bem ensaiados por Dona Vita e entoados pelas moças da cidade:

"Ao lado das rosas,
com nítida alvura,
se mostre o jasmim,
sinal de candura!"

Por ocasião da coroação de Nossa Senhora, aqueles cantos ecoavam por toda igreja e enchiam meus olhos com purpurina, coroas de papel laminado e cestas de papel de seda. O grande altar central, onde ficava a imagem da padroeira, era vestido de branco e servia de céu para as virgens pisarem, solenemente, no mês de maio.


Adulto, já órfão daquela vontade de céu, eu gostava mesmo era de sentar naqueles bancos e deixar meus olhos passearem por aquelas belezas impregnadas pelas memórias de quem já fez daquela igreja - com "i" minúsculo mesmo - extensão da própria casa. De cor, eu sabia dizer os desenhos de cada canto, soletrava os sons coloridos que os tablados de madeira faziam ressoar e sentia o cheiro das tantas vezes que a vida se fez rito naquele lugar: batismos, dia das mães e dos pais, novenas, via-sacras, casamentos, mortes, cantorias...

Naquele pedacinho de céu, minhas memórias, desavisadas, pareciam encontrar aconchegos em cada canto. Até pensei que elas habitariam aquele lugar sagrado para sempre. Paraíso inatingível, e por isso mesmo, intocável, eterno. Mas, a Igreja, essa sim, com "I" maiúsculo de Instituição, expulsou cada uma de minhas lembranças de lá. Inquisitora, botou porta afora com apenas uma reforma, minhas memórias e suas nuances individuais e coletivas. Os fazeres e suores que entalharam aqueles altares saíram do presbitério para o terreno do fundo - purgatório onde agonizam imagens, perfumes, sons, situações e pessoas que não quero esquecer.


E foi assim, entre pedaços quebrados e contornos esquecidos, que encontrei aquele pedacinho de céu jogado entre as tralhas que restaram da reforma que fizeram na pequena igreja da minha cidade natal nos últimos meses. Da necessidade de uma reforma, eu nunca duvidei ou sequer ouso questionar. Minha indignação se refaz diante do modo como os trabalhos foram orquestrados. Dessa orquestração, eu esperava uma sinfonia que cantasse respeito com a trajetória do lugar, com as memórias do povo, com as celebrações da minha gente, com a minha própria história.

Ao invés disso, o som que fica é o da manipulação, do abafamento e da invisibilidade - características da ação dessa Igreja que aliena sob o discurso da libertação e que se apropria das histórias alheias para aplainá-las sob o peso da cruz.


Ironicamente, daquela igreja onde eu tinha memórias espalhadas em cada canto só sobrou a fachada. Casca sem miolo. Pão amanhecido sem as cores e os sabores da vida. Caixote sem as flores, os laços de fita ou as bandeirinhas coloridas. Hoje, mesmo com asas para voar, eu não teria espaço para brincar ao lado de São Sebastião.

Imagens: Wolney Fernandes

domingo, 5 de agosto de 2012

Meu Balão de Gás Hélio


Compro um balão de gás hélio e sento no banco do parque esperando os minutos passarem. Passam por mim dois meninos que me olham sem entender o motivo pelo qual um adulto está ali sentado com um balão colorido nas mãos.

Passa uma mãe levando o filho no colo. Ela retorna quando percebe o interesse da criança pelo balão. Me ignora e balbucia, em língua que só ela e o filho entendem, gracejos e odes à bexiga de gás.

Fico no parque até anoitecer. Por vezes, esqueço do balão e me assusto quando a brisa ensaia danças com ele ao meu lado.

Em determinado momento sou convidado a olhar o céu. Reclamo das luzes da cidade que ofuscam o brilho das estrelas me impedindo de localizar o Cruzeiro do Sul ou as Três Marias.

Minutos antes de ir embora, o fio que prende o balão se arrebenta e ele começa a subir sem rumo, mas em direção a constelações invisíveis. Invejo aquele vôo lento, errante, libertador... movido pela brisa noturna e cujo destino é um céu salpicado de estrelas que, embora ofuscadas pela iluminação urbana, traçam rotas inventivas e riscam desenhos de se perder de vista.

Foto: Wolney Fernandes

O que se aprende na fila


A mulher idosa, na fila, vira para mim e ensina: "De fila para pegar comida a gente não pode reclamar. O que eu não quero é ficar na fila esperando a morte chegar".

Foto da Exposição "A Volta ao dia em 80 Mundos"

Depois das férias


15 dias de férias não foram suficientes para me tirar dessa apatia que tento, porcamente, esconder. Todas as atividades que tenho que retomar amanhã me parecem, hoje, cadafalsos sustentados pelas horas que terei que enfrentar dando respostas vagas para perguntas que não quero responder: tudo bem? como foram as férias? aproveitou bastante? viajou?...

Todos os planos feitos para estas férias eu deixei escorregar por entre os dedos por displicência e desarranjos intestinais. Meu quarto, revolto por dias de ermitão, parece o melhor lugar do mundo para passar mais uma leva de dias. Um laguinho de água parada para ficar ancorado sem ter que pensar em navegar. Minha vontade ainda é emendar um filme atrás do outro para não ter que pensar nas contas a pagar na segunda.

Cresce em mim aquela vontade de anonimato. Deixar o telefone tocar até cair, não ver e-mail novo na caixa de entrada. Poder entrar nos lugares sem que ninguém saiba quem sou. Falar pouco e, nesse silêncio, encontrar o sossego que eu almejo sem saber direito o porquê.

Foram 15 dias de tentativas. Talvez displicência não tenha sido o que de fato fez os dias de folga escorregarem pelos meus dedos. Marquei almoços, visitei amigos, conheci pessoas, peguei sessões de cinema às 11 da manhã, fiz piquenique... mas de que adiantou tanto empenho se nada do que fiz plantou coragem para retornar à vida de todo dia, de dia inteiro?

Lá se foram as férias sem os sorrisos ou os frescores de quem carrega um tantinho de felicidade. Talvez esse tenha sido o preço a pagar por fingir que a vida já voltou ao normal.

Foto: Wolney Fernandes

MixTape 01


Músicas para piquenique com amigos, toalha xadrez e toda sorte de risos.

01. Domingo Feliz - Ângelo Máximo
02. Não é Proibido - Marisa Monte
03. Êfemera - Tulipa Ruiz
04. Sugar Town - Nancy Sinatra
05. Jardim do Éden - Marcelo Jeneci
06. O Quintal do Vizinho - Roberto Carlos
07. Chipi Chipi - María Esther Zamora
08. Babylon - Zeca Baleiro
09. Plástico Bolha - Karina Buhr
10. Raindrops Keep Falling on my Head - B.J. Thomas

Ouça aqui!

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Metafísica do amor


Pedi um chá de maçã para acompanhar o pedaço de torta de limão e abri o livro na página 10.

"O que vou ser depois que eu morrer? Eu vou perder os meus pensamentos?"*

Na TV ligada às minhas costas as imagens, mudas, eram lidas pelo recurso da tecla sap. O som que ecoava pelo lugar era o burburinho de conversas paralelas misturado ao barulho que os talheres orquestravam e, à minha frente, aquela questão existencial posta por letras tão bem alinhadas. Frente a ela, meus olhos buscaram outras paisagens porque meus pensamentos não conseguiam sair daquelas 14 palavras.

Foi então que os vi. Sentados de frente um para o outro, aquele casal tinha a ousadia de permanecer alheio a toda minha inquietude diante do embate metafísico que eu, silenciosamente, acabava de travar com as palavras de João Paulo Cuenca.

A paisagem que se seguiu era cartografada por beijos, afagos e olhares que não se desprendiam um do outro. Fiquei hipnotizado e, talvez tenha sido exatamente aquilo que meus olhos procuravam para me distanciar de minhas agonias tão chatas.

Meu coração, serenado diante daquelas vertigens apaixonadas, delicadamente reconduziu meus olhos para a leitura da crônica. Antes do final, eu já sabia que as respostas para aquelas duas questões estavam no fato de poder mudá-las, trocá-las, substituí-las por outras perguntas. E que esse movimento de troca me garantiria fôlego para chegar ao final do caminho.

Se apaixonado, então, a travessia pela vida pode ser bem mais simples.

Foto: Wolney Fernandes
(*) Citação do livro "A última madrugada" de João Paulo Cuenca