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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

ETV - 01

Proposta de Adriano Antunes:

"Senhor... Mire veja: o mais importante e bonito,

do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas - mas
que elas vão sempre mudando."

(Luiz Horácio - Jornal Rascunho Agosto/09)
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De Wolney Fernandes, "[In]completudes".

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De Adriano Antunes, "Ponto de Partida".

- Eu não lembro bem a data, mas o cheiro de terra úmida do pátio da casa de minha avó, ah senhor, prendeu-se ao meu nariz.

Fez uma pausa, olhou o céu e continuou:

- Toda vez que minha família chegava de cansativa viagem desde Santa Catarina para férias na casa de minha avó Alice, meus olhos pequeninos procuravam identificar as grandes ruas, as árvores floridas e a terra arenosa, úmida, que se estendia do portão por entre as folhagens até a porta da cozinha.
Meu coração batia descompassado.

Sorriu por um instante, inclinou a cabeça para o lado e logo os olhos brilharam:

- Eu corria na frente de todos e afoito empurrava aquele portão de ferro pesado pintado de verde escuro. Contornava a casa em direção a cozinha, passando as mãos em um canteiro de margaridas que indicavam o caminho com uma sequência de dentes branquinhos a sorrir e dar boas vindas.

Levantou-se, foi até a sacada em apenas dois passos. Olhou a cidade.

- Eu adorava o conjunto de xícaras de minha avó Alice. Ela sabia telepaticamente, como toda avó, e me esperava com leite quentinho na xícara que eu mais gostava. Era um conjunto de porcelana muito delicado e pintado a mão, como tudo naquela época, onde gnomos faceiros, multicoloridos, trabalhavam alegremente. Eu os achava tão felizes que me tornava feliz em observá-los.

Parou na entrada, pensou um pouco, depois continuou:

- Havia uma grande taquareira nos fundos da casa. Era o quartel general de meus primos. Ali, escondidos por entre taquaras e folhas secas, bolávamos os mais mirabolantes planos. Inclusive o de fugir de casa quando nossos pais exigiam tema feito e banho tomado.

Olhou desta vez para o pequeno apartamento. Observou a mobília, os quadros, as cores. Desviou o olhar novamente para a sacada.

- Hoje, depois de muito tempo, permiti ao meu corpo de adulto percorrer os arredores de minha infância. Sinto que nesses anos todos impermeabilizei o olhar sobre o meu passado andando por caminhos definidos, paralelos. A casa de minha avó continua lá. Três ruas daqui. Mas eu fui crescendo e limitando minha vida ao meu estacionamento, ao prédio, ao horizonte distante que vejo da minha sacada. Mas hoje, por quase duas horas, percorri meu bairro. Reconheci a Relojoaria Lino, onde minha mãe comprou meu primeiro relógio e me transformou em senhor do tempo; o Mercado Rabaioli, de pães quentinhos pela manhã e corridas urgentes no meio da tarde, quando de súbito faltava manteiga para o lanche da gurizada; a Estofaria Estrela, com seus sofás encalhados, na frente do prédio, expondo suas vísceras de espuma.

Sorriu.

- O bom da vida é isso: as coisas só desaparecem quando morrem dentro da gente.

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