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sábado, 26 de outubro de 2013

A Lua Me Disse


Coloco o livro na mesinha à minha frente enquanto sou enforcado pelo último botão da capa que envolve meus ombros e aperta meu pescoço. Reclamo ao cabeleireiro, mas o papo que ele trava com a mulher  ao lado parece bem mais eloquente que o meu pedido de socorro.

Tenho sorte porque a atenção da mulher sob a touca de papel alumínio se volta para o livro que eu deixei na mesa: "Posso ver?" ela pergunta já estendendo a mão sobre o mesmo. Incapaz de pronunciar uma palavra, eu aceno que sim com a cabeça, e finalmente meu desespero é notado pelo cabeleireiro que afrouxa a capa e dá início à preparação do corte.

"Máquina 1 ou 4?"

Antes que eu responda ele já está com a máquina de número 1 ligada e, graças a minha gagueira, quase saio de lá pronto para me ingressar no exército. Respiro fundo enquanto a dona do lado folheia o livro demonstrando todo o interesse em encontrar naquelas páginas um sentido para sua vida.

Depois da máquina, sinto a tesoura raspar de leve a minha orelha e minha atenção se volta para as mãos rápidas do cabeleireiro com aquele medo-menino de ter parte da orelha arrancada. Fecho os olhos e rezo.

Minha oração é interrompida pela dona do lado que me cutuca para perguntar de onde é o autor do livro. Abro os olhos com medo do que vou ver no espelho e respondo rapidamente que Valter Hugo Mãe é de Portugal. Boquiaberta, a senhora revela aos quatro cantos do salão que o referido escritor parece ter burilado para ela os trechos devorados naqueles minutos de leitura de "Nosso Reino".

Já conformado com o estrago que as mãos pesadas do profissional vai fazer na minha cabeça, vejo que minha vizinha de espelho anota algo que ela encontra no livro: "Estou pegando o endereço da editora para tentar contato com ele. Sou espiritualizada e minha vida é regida pela lua. Encontrar esse livro aqui só pode ser um sinal. Preciso desse homem na minha vida" - explica como se estivesse fazendo a lista de compras da semana.

Antes que eu consiga esboçar um sorriso, uma funcionária do lugar aparece por trás da leitora e ameaça tirar a touca que ela traz na cabeça: "Vamos cortar desta vez?" pergunta a profissional. "Nem pensar!" responde com eloquência e completa: "Lua minguante, minha filha! Ninguém toca em um fio do meu cabelo nesse período".

Prometo a mim mesmo que da próxima vez, vou esperar um eclipse lunar antes de me aventurar novamente por salões do Centro da cidade. "Lua minguante para o cabelo, mas crescente para as coisas do coração" ela me explica em tom confidencial com o endereço da editora anotado em um pedaço de papel que ela dobra e guarda entre os seios fartos.

Não consigo conter meu riso e, por um instante, me esqueço da festa que acontece na minha cabeça e para a qual nem fui convidado. Meu sorriso morre ao olhar no espelho e ver o barbeiro abrir a gaveta à minha frente com um movimento rápido.

Ele pega a navalha. Eu engulo seco.

Imagem capturada aqui

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