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sexta-feira, 20 de março de 2015

Em busca do tempo perdido


A experiência de ler Proust pela primeira vez foi permeada por sentimentos controversos e já digo, de antemão, que é preciso persistência para atravessar as lembranças desfiadas pelo autor nesse primeiro volume da série "Em busca do tempo perdido". Não quero dizer com isso que seja uma leitura difícil em função de um rebuscamento ou uma erudição que se findam nelas mesmas. Não é! A questão é que Proust escreve sobre detalhes e divaga, com muita propriedade, sobre resquícios do efêmero. Mais do que acontecimentos, o que importa em sua escrita parece ser a experiência que se extrai desses mesmos acontecimentos. O narrador da história se detém na observação profunda daquilo que aguça seus sentidos e investiga as sensações e as memórias que se descolam deles.

"Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim."

E assim, desde a luz que o desperta pela manhã até o gosto da "madalena" que se dissolve na boca transmutam-se em descrições elaboradas com um apuro estético de encher as vistas. As palavras, cuidadosamente lapidadas, compõem uma espécie de mosaico ornamentado pela experiência do sensível que se desdobra diante de um sabor, de um som, de um cheiro, de um lugar...

"Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la?"

O livro é dividido em três partes. Na primeira delas [minha preferida, diga-se de passagem] diante de um fiapo de história somos apresentados pelos personagens que orbitam em torno do narrador e que irão exercer alguma influência sobre ele no futuro. Há os membros da família, passando pelos avós e os tios mais distantes, mas não só. Pela figura do Sr. Swann, um amigo da família, passamos também a acompanhar outra gama de personagens que serão os protagonistas da segunda parte do livro. E foi exatamente nesse ponto da narrativa que comecei a ter que me esforçar um pouco mais na leitura, uma vez que o autor parece andar em círculos para contar a história de amor entre Swann e Odete e de como o amor pode se retrair diante de um ciúme desmedido.

"Antes, sonhava-se possuir o coração da mulher amada; mais tarde, sentir que se possui o coração de uma mulher pode bastar para que nos enamoremos dela. E como antes de tudo se procura no amor um prazer subjetivo, assim, nessa idade em que seria de esperar que o gosto pela beleza feminina constituísse a maior parte desse sentimento, pode nascer o amor sem que tenha havido em sua base um desejo prévio. Nessa época da vida já se foi atingido várias vezes pelo amor e este já não evolui por si mesmo segundo as suas próprias leis desconhecidas e fatais, ante o nosso coração atônito e passivo."

Há de se entender a insistência do autor em investigar a natureza desses dois sentimentos gigantescos, mas foi aqui que senti que a leitura começou a se arrastar. O movimento em torno da vida social parisiense do início do século XX é ricamente escancarado e isso ajudou bastante a manter meu interesse pelo livro. Mexericos, arranjos sociais, traições e toda sorte de infortúnios advindos de um convívio em festas e jantares não deixam "a peteca" cair. Há de se ressaltar também os diálogos afiados e muito bem elaborados que fazem o texto vivo e pulsante.

Na terceira parte do livro encontramos o narrador, já adolescente, e acompanhamos as belezas do primeiro amor incrustadas em referências cotidianas e que aguçam a curiosidade para se enveredar pelo segundo volume. Ultimamente andava com uma preguiça fenomenal em ler séries literárias, mas Proust conseguiu soprar pra longe esse meu desânimo. Apesar de lenta, a leitura de "No Caminho de Swann" foi repleta de bons momentos. É, sem dúvida, um livro incrível, mas difícil de atravessar em função dessa relação tão íntima com os detalhes e divagações que parecem infindáveis dentro da escrita que, a meu ver é o ponto alto da obra. Proust tem a capacidade de suspender nossos pensamentos congregando todos os sentidos para aquilo que lemos.

Ao terminar de ler, fiquei pensando que a dimensão da sensibilidade descrita por Proust toca naquilo que compõe a matéria-prima da arte. É pelos sentidos que experimentamos o mundo e ao se debruçar naquilo que ele chama de lembranças involuntárias, acaba por nos provocar a olhar para dentro de nós mesmos [bem lá no fundo] e, então percebermos, na partícula mais ínfima daquilo que nos constitui, um universo inteiro a explorar.

"Os lugares que conhecemos não pertencem tampouco ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não eram mais que uma delgada fatia no meio de impressões contíguas que formavam a nossa vida de então; a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante."

Foto: Wolney Fernandes

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