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quinta-feira, 9 de abril de 2015

Os Resíduos do Dia


Há de se explicitar que Stevens é um homem triste. No entanto, essa tristeza parece invisível aos olhos dele mesmo. Narrador da sua própria história, o protagonista de "Resíduos do Dia" - livro de Kazuo Ishiguro - é um mordomo inglês que dedicou grande parte da vida em servir Darlington Hall, na Inglaterra do início do século XX.

"Decerto, um grande mordomo é grande em virtude de sua capacidade de habitar seu papel profissional - e de habitá-lo até o fim. Não se deixa abalar por acontecimentos externos, por mais surpreendentes, alarmantes ou constrangedores que sejam. [...] Trata-se, como disse, de uma questão de dignidade."

De modo tocante, acompanhamos as lembranças desse protagonista e seu modo peculiar em lidar com as próprias emoções. Camuflados pelas obrigações atribuídas a seu papel, os sentimentos de Stevens se mantêm nas entrelinhas daquilo que nunca é pronunciado. E aqui há de se ressaltar a delicadeza com a qual o autor trata esses sentimentos, [re]velando-os com uma sutileza que impressiona.

Guardados nas pausas e nas dúvidas daquilo que é lembrado pelo mordomo em uma viagem de cinco dias, os acontecimentos do livro vão descortinando os bastidores de um relacionamento entre Stevens e uma antiga governanta com quem trabalhou anos antes. Os diálogos travados entre os dois realçam o talento de Ishiguro no desenvolvimento da história, pois em cada fala estão contidos, ao mesmo tempo, os limites e os horizontes desses personagens.

A natureza solitária e contida do protagonista combinada com a forte personalidade da governanta constituem um embate sublime sobre o entrelaçamento das diferenças. Fiquei particularmente comovido com a reflexão sobre público e privado, desejo e responsabilidade contida nas páginas desse romance que já figura entre um dos livros mais bonitos que eu já li.

As mudanças vivenciadas no período pós-guerra são realçadas pela figura do novo patrão de Stevens - um jovem americano que assume a propriedade que outrora pertenceu a Lord Darlington a quem era voltada toda a devoção do mordomo. Daí nascem algumas das cenas mais hilárias do livro por trazer à tona essa necessidade, mesmo que permeada por certa relutância, de encarar o novo e o diferente.

"Se sua casa está pegando foto, você não reune a criadagem na saleta e discute durante uma hora as várias opções de fuga, não é? Isso pode ter sido bom um dia, mas o mundo agora é um lugar complicado."

O princípio de dignidade vastamente perseguido por Stevens faz com que ele se esqueça de olhar para a vida em sua complexidade e descabimento. Ao colocar as obrigações, herdadas pelo pai também mordomo, acima de qualquer outra possibilidade, o que se vê é a figura de um homem fiel, mas perdido num sentimento de inadequação diante de um mundo em mudança.

"Pergunte a qualquer um e vai ver só. A noite é a melhor parte do dia."

Refinamento e melancolia dão o tom dessa história onde o profissionalismo exacerbado parece podar qualquer vestígio de felicidade. Os resíduos do título, muito bem explorados na parte final do romance, apontam para frente como se sugerissem um outro jeito de estar no mundo. Difícil é mudar quando nos resta apenas a noite de um dia inteiro tomado por anulamentos.

Foto: Wolney Fernandes

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