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domingo, 31 de maio de 2015

O Som e a Fúria


O livro chegou em casa em um período repleto de leituras obrigatórias. Junto com o livro só o peso de um nome: William Faulkner. Sabe autor que todo mundo já leu, menos você? Pois é. Como de costume, espiei com as mãos, cheirei com os olhos e me deixei levar pela curiosidade das primeiras linhas. Era uma manhã de sábado e eu nada sabia do enredo de "O Som e Fúria". Entre estranhamentos iniciais e uma vontade de saber como me livrar daquele emaranhado de vozes fui capturado e, quando dei por mim, estava em meio ao labirinto sedutor que constitui a linguagem de Faulkner.

“O Som e a Fúria” começa como um jorro de consciência que nasce de um trecho da peça Macbeth, de Shakespeare, em que se diz que a vida é "uma história cheia de som e fúria, contada por um idiota e vazia de significado". E é assim, pela visão de um deficiente mental é que somos inseridos na história decadente da família Compson. Benjy, o narrador "retardado" da primeira parte, não fala, mas sua narrativa é marcada por uma polifonia de sentidos.

“Ela pegou na minha mão e corremos pelas folhas barulhentas e cheias de sol. Subimos os degraus, saímos do frio claro e entramos no frio escuro. (…) Caddy tinha cheiro de árvore”

Essa primeira parte, em especial, constitui um desafio maior pois exige que o leitor assuma o papel de alguém íntimo que não precisa de explicações, que não se situa em uma ordem cronológica ou um conhecimento prévio do que está por vir. Somos arremessados em meio a esse fluxo de memórias, ódio, ciúme e agonia genuínos. E de lá não se consegue mais sair. Há sim, resquícios de uma trama, mas é como se tudo estivesse embaralhado na cabeça do narrador.

Na segunda parte, talvez a minha preferida, passamos a acompanhar os pensamentos de Quentin, o irmão perturbado por um amor proibido e que foi estudar em Harvard. Pela construção complexa de um dia na vida dessa personagem, reflexões acerca do tempo parece ser aquilo que move a consciência que ele tem de si próprio. E é visceral a relação estabelecida entre o amor que Quentin carrega e a medida do tempo que lhe resta. Ele quer um amor eterno, imperecível, mas como lidar com o desejo de eternidade?

“Porque o pai disse que os relógios matam o tempo. Ele disse o tempo morre sempre que é medido por pequenas engrenagens; é só quando o tempo pára que o tempo vive.”

Depois da segunda parte, a narrativa se fixa em Jason, o filho inescrupuloso que não se conforma com as escolhas da irmã Caddy e faz disso uma batalha com tudo e com todos que o rodeiam. Preconceituoso e movido por uma ganância que o faz roubar a própria mãe, Jason é constituído por uma fúria que nos leva a entender um pouco mais dos fatos caóticos apresentados nas partes iniciais do livro. A sua narração é a mais linear, mas ao mesmo tempo o desconforto permanece através do confronto com o cinismo demasiadamente humano da personagem.

E por fim, a quarta e última voz é narrada em terceira pessoa, mas focada em Dilsey, a empregada negra que funciona como uma espécie de alicerce para a família Compson. Dotada de um senso de realidade e humanidade exacerbados, é por ela que vislumbramos, de modo sutil e belo, o esclarecimento desse quebra-cabeças criado por Faulkner.  

Numa escala menor, "O Som e a Fúria" parece abordar temas variados: suicídio, família, conflitos raciais no Sul dos Estados Unidos... mas há um fio condutor no que se refere a obra que diz respeito à sua linguagem inventiva, complexa e ainda assim fluida o suficiente para envolver o leitor em um labirinto de sensações. Cada pedacinho que parece solto à princípio, vai formando um rico mosaico da natureza humana à medida que se a trama se adensa. Cada capítulo terminado me fez querer reler o que foi lido e avançar para o desconhecido num movimento espiralado que se assemelha a dança celeste que vemos no quadro "A Noite Estrelada" de Van Gogh.

É preciso deixar-se carregar pelo vendaval de pensamentos, imagens e sensações que o livro contém.  Não é a toa que entramos pela história pelo seu clímax e saímos dela através de um único momento delicado, de tranquilidade ímpar, vivenciado pelo retardado Benjy. Mais do que uma experiência puramente racional, "O Som e a Fúria" foi, pra mim, sem sombra de dúvida, uma experiência sensorial de onde eu não queria mais sair.

Imagem: Wolney Fernandes

2 comentários:

Cris disse...

Wolney, te acompanho no instagram e preciso confessar: eu, formada em Letras, amante da Literatura, leitora voraz, um ser de pura linguagem, ainda não li Faulkner! Shame on me!! Desde que postou aquela capa mais linda (a Cosac não tem capa feia) e aquele comentário sobre o livro, não pude mais esquecer. Vim ver o blog e encontro esse teu texto maravilhoso!!Ler Faulkner, a partir de agora, tornou-se uma imposição!
Abração,
Cris

Jeniffer Geraldine disse...

Nunca li Faulkner. E, acredite, não tinha ainda parado para ler nada sobre O Som e a Fúria, mas vi essa imagem fantástica que você criou e resolvi ler sua resenha. Resultado? Já preciso desse livro.
Beijos :)

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