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terça-feira, 16 de junho de 2015

Ulysses - O que é de gosto é regalo da vida


A ideia era bem simples: começar a ler Ulysses do James Joyce no Bloomsday de 2014 (para entender do que se trata, clique aqui). Apesar de imaginar que a tarefa seria árdua, não pensei que iria demorar um ano para dar conta de acompanhar as 18 horas do dia do Sr. Bloom. Foi a primeira vez que fiquei tanto tempo nas páginas de um livro. E, de antemão, já aviso que foi uma experiência única e permeada por estranhamentos. Foi difícil? Foi. Valeu a pena? Demais! Vou tentar explicar os porquês.

Ulysses foi escrito em 1922 tendo a Odisséia de Homero com base. Toda a história se passa em um único dia: 16 de junho de 1904. No decorrer desse dia, acompanhamos, separadamente, as peripécias do Sr. Bloom e de Stephen Dedalus até eles se encontrarem. Os dois são movidos por toda sorte de acontecimentos - encontros, traições, notícia de morte, visitas em museus e bordéis são embalados por um ritmo ditado pelo fluxo de consciência dos personagens e outros caprichos do autor. E não são poucos os labirintos e estilos permutáveis utilizados por Joyce para contar essa história.

O modo como o autor consegue arquitetar estruturas muito contemporâneas no que diz respeito à forma da escrita impressiona e, por vários trechos, foram essas variações que me ajudaram a avançar na leitura já que pelo conteúdo nem sempre é possível se manter conectado. Ler Ulysses é mais uma experiência estética do que qualquer outra coisa. Desconfio que quem entra no livro querendo compreendê-lo apenas pelos tons da racionalidade não vai conseguir terminá-lo. Há trechos onde a invenção e recriação da língua ditam outros modos de compreensão.

“Coloque o coitadinho do bisavô Craahraarc! Oioioi toumuitcontent craarc toumuitocontentderrevervocês oioi toumuitr crptschs.” [p. 243]


Há, ainda, partituras musicais, trechos escritos com abreviaturas e páginas e páginas sem nenhuma pontuação para aguçar outros sentidos diante da obra. A leitura é desconcertante, exigente e demanda foco. Pela minha experiência não se lê Ulysses sem um mínimo de empenho e é exatamente por isso que é preciso esperar o momento certo para cumprir a travessia. Com isso não quero dizer que é um livro para poucos. De modo algum! Creio que todo mundo consegue atravessá-lo, mas é preciso ter disposição, disciplina e montar estratégias para fazer isso. 

Um dos mecanismos de leitura que mais me ajudou foi não me fixar apenas no conteúdo, mas tentar me envolver com a forma da escrita que é absurdamente inventiva. Gosto de pensar a escritura como um espaço para a subversão, um lugar para triturar o que nos parece impronunciável.

O tom irônico e debochado com o qual Joyce descreve determinadas passagens, por vezes, ajudam a leitura fluir. A impressão que dá é que ele estava se divertindo bastante enquanto escrevia. Temas como a Igreja, a erudição vazia, o sexo e as artes são os alvos principais da fina ironia destilada pelo autor.

"Creem em Dê os Paus, todolaceroso, criador do inferno na terra e em Marujo Tristo, esse filho da luta, que foi concebido pelo escândalo tanto, nasceu da viagem marinha, padeceu o serviço completo, foi cicatrizado, exposto e bem sovado, gritou como um danado, e no terceiro dia relevantou da cama, voltou aos seus, está sentado a boreste de seu país de onde há de vir penar na vida e a postos." [p. 529].

O modo como o autor profana e brinca com obras clássicas é, em grande parte, o melhor da leitura. Quando Joyce pega, por exemplo, um trecho de Hamlet de Shakespeare e o coloca no diálgo que reproduzo abaixo, sinto que ele faz isso com muita propriedade:

“- A lua, o professor MacHugh disse. Ele esqueceu o Hamlet.
- Que vela a vista toda ao longe e espera por que o orbe luminoso da lua fulgure a irradiar sua argêntea efulgência...
- Ai! O senhor Dedalus gritou, ventilando um lamento desesperançado, bosta com cebola! Chega, Ned. A vida é curta demais.” [p. 259] 


São muitas as referências a outras obras que entremeiam as passagens do livro e é um perigo se ater a todas elas. Quando percebi que as tais referências estavam deixando a leitura ainda mais intrincada, minha estratégia foi marcar aquilo que instigou minha curiosidade para, depois da leitura concluída, voltar e esmiuçar cada uma delas.

O que torna essa obra singular é seu caráter híbrido, aberto e desconcertante. Um romance experimental por onde o autor vai desfiando modos de escrever que se complementam, mesmo que por atrito. Observe esses dois trechos e suas disparidades estilísticas:

"Olho nos polícia. Como? Viu ele hoje num enreto? Amigo seu esticou as canelas? Crendiospai! Coitadim do criolim! Cê não me diga uma coisa dessa, Pold, meu comparsa! I êis chorô qui jorraro u'as lágrima uns chôru moiádu purquiumamígu Padney foi levádu num sácu prêtu?" [p. 663]

"Destarte, estando o senhor Bloom lastreado pela circunstância de que um dos botões de trás de sua calça havia, para variar o veterano anexim, batido os botões, conquanto, assumindo plenamente o espírito da coisa, ele heroicamente fizesse pouco do infortúnio." [p. 868]

Ao final da décima oitava hora do dia, já se leu de tudo um pouco sem que essas marcações estejam aparentes, pois a narrativa se mistura em degradês difíceis de serem definidos. O que me ajudou bastante quando eu me via perdido foi um esquema que agrupa cada hora do dia em uma tabela de referências incluída na apresentação da edição que eu li que foi essa da Penguin/Companhia que pode ser visualizada no início desse texto.

A terceira e última parte de Ulysses retoma uma narrativa mais linear e insere perguntas de toda ordem para perscrutar sentimentos vivenciados durante o dia pelos protagonistas. Uma espécie de exame de consciência que o Sr. Bloom faz antes de adormecer. São questões existenciais, listas, orçamentos e toda sorte de curiosidades. Uma delas em especial resume a experiência vivenciada pelos personagens principais - o maduro Sr. Bloom e o jovem Stephen Dedalus - em palavras que também poderiam ser atribuídas ao próprio autor:

"Teria Bloom descoberto fatores comuns de similiaridade entre suas reações respectivamente semelhantes e dissemelhantes à experiência? Ambos eram sensíveis a impressões artísticas musicais em preferência a plásticas ou pictoricas. (...) Ambos obdurados por precoce treinamento doméstico e por hereditária tenacidade de resistência heterodoxa professavam sua descrença em várias doutrinas religiosas ortodoxas, nacionais, sociais e éticas."

Enfim, ao propor labirintos linguísticos em Ulysses, James Joyce evidencia sua apurada erudição, que nunca vem desprovida de questionamentos e está sempre conectada com aquilo que o cerca e que permeia seu cotidiano. Numa atuação invejável, o autor exibe uma capacidade técnica ao mesmo tempo que parece divertir-se com o próprio ofício. 

"O que é de gosto é regalo da vida" [p. 598]

Conseguir chegar ao fim desse calhamaço me deixou com uma sensação diferente de qualquer outra que tive diante de uma obra literária. Uma espécie de amor bandido, daqueles que maltratam mais que acariciam e, ainda assim, você não larga. Passei um ano nadando nas águas dessa escrita que ora me permitiu mergulhos profundos, ora me lançou para a superfície numa movimentação inquieta, difícil e ainda assim, permeada por descobrimentos que hão de me acompanhar vida afora. Sobrevivi. Ufa!

Imagem: Wolney Fernandes

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