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terça-feira, 28 de julho de 2015

O Paciente Inglês


"Tudo que eu queria era andar numa terra que não tivesse mapas"

A frase acima encerra um dos parágrafos mais bonitos de "O Paciente Inglês". Nessas poucas palavras residem os principais temas que atravessam essa história de amor escrita por Michael Ondaatje. Em suas entrelinhas estão o desejo de mudança, o nomadismo proeminente dessa vontade e as tramas multiculturais pelas quais os personagens são enredados.

"Há um mês especial na vida deles durante o qual dormem um ao lado do outro. Um celibato formal entre os dois. Descobrindo que no amor pode haver toda uma civilização, todo um país aberto à frente deles."

Nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial acompanhamos a trajetória de Hana, enfermeira canadense que decide cuidar sozinha de um homem ferido numa vila abandonada na Toscana. Vão se juntar a ela e seu paciente, um espião italiano chamado Caravaggio e Kip, um indiano cujo ofício é desarmar bombas escondidas naquele território devastado pela guerra. O passado dessas quatro figuras solitárias é desnudado, deixando à mostra as inquietações e as mazelas que carregam depois do conflito mundial que acabaram de testemunhar. 

"Caravaggio fica ali sentado em silêncio, os pensamentos perdidos entre os ciscos flutuantes. A guerra o desequilibrou e não é capaz de voltar para nenhum outro mundo desse jeito, com o aprumo ilusório que a morfina promete."

Confinados num espaço abandonado e à mercê de uma melancolia que orienta o modo de vida naquele momento, esses personagens tentam sair, cada um a seu modo, do espaço limitado e demarcado pelas diferenças geográficas que, de certa forma, acabaram por definir seus destinos.

Escrito de modo não linear e entrecruzando tempos verbais e narrativas distintas, o livro é permeado por cenas que, à princípio, podem soar como episódicas, mas que, aos poucos, revelam conexões inteligentemente arquitetadas. Como ponto central, temos a história do misterioso paciente que teve seu corpo queimado depois de um terrível acidente aéreo. É pela revelação sutil do que aconteceu a esse personagem que temos acesso aos demais fatos que afetam cada uma daquelas pessoas.

A escrita de Ondaatje é refinada e salpicada de referências advindas da arte e isso faz da história um almoxarifado com boas indicações literárias e musicais (confira a playlist no final desse texto). Os personagens carregam uma certa erudição que acaba por nos ajudar na compreensão de suas motivações ao longo da história. Há, por exemplo, um livro de Heródoto, cultuado pelo paciente inglês que vai salpicando a narrativa com citações e amarrando cada detalhe com maestria. Os amantes de literatura irão se deliciar com o modo com o qual os livros se revelam importantes para a condução da vida daquelas pessoas. Há uma biblioteca no local onde se passa a história e as cenas envolvendo leituras são particularmente belas. 

"Ela parou de ler e ergueu os olhos. Saindo da areia movediça. Ela estava evoluindo. Era assim que o poder mudava de mãos. Enquanto isso, com a ajuda de uma anedota, eu me apaixonava. Palavras, Caravaggio. Elas têm um poder."

Outra característica marcante são os espaços em branco deixados entre uma cena e outra, como se o autor quisesse que preenchêssemos esses espaços fazendo de nós, uma espécie de co-autores. Minha experiência de leitura foi curiosa porque nas primeiras cinquenta páginas eu não conseguia adentrar na história e na segunda metade do livro eu simplesmente não conseguia sair dela. Creio que a diferença dessas aproximações só aconteceu quando eu passei a fazer pontes entre uma cena e outra. Foi só quando eu me propus a preencher os vazios deixados pelas cenas criadas pelo autor que a leitura rendeu. Escutei as músicas citadas, vasculhei as imagens marcantes e mergulhei nas referências literárias apresentadas no texto e isso ajudou bastante nessa imersão que o livro possibilita. 

Aliás, a versão cinematográfica da obra se aproveita desse recurso e faz isso com muita propriedade, recheando cada uma dessas possibilidades interpretativas com sentidos que, a meu ver, estão muito bem alinhados com aqueles que eu mesmo fui criando enquanto lia. Desse modo, livro e filme se complementam com uma precisão bem rara de se ver em adaptações do gênero. A principal diferença entre um e outro reside no final, mas a alteração feita no cinema é tão boa que me fez desejar vê-la no livro.

"Morrer significa que a gente passa para a terceira pessoa?"

Terminei a leitura muito apegado aos personagens e com aquela vontade de ficar um pouco mais naquela paisagem iluminada por uma vela e pelos clarões das explosões. Ler "O Paciente Inglês" possibilitou-me diversos deslocamentos internos [a imagem do Davi e Golias ainda me inquieta] e propiciou uma das melhores leituras do ano.

Pra terminar, uma pequena playlist sugerida nas páginas do livro e capturada nas cenas do filme:
2. My Romance - Lorenz Hart e Richard Rodgers
3. Honeysuckle Rose - Django Reinhardt
4. The Wang Wang Blues - Benny Goodman
5. Rupert Bear - Gabriel Yared

Um comentário:

Anônimo disse...

Sempre vi esse livro perdido na sua edição pocket nas Lojas Americanas da vida, pegava, olhava, mas deixava pra lá com medo de ser um "romanção barato". Depois dessa resenha, já está na minha lista de leituras. Excelente resenha!

Carlos Vieira