- Ela colecionava palavras - disse o corretor um tanto apressado para explicar a parede repleta de traços desconexos. O quarto era frio, úmido, mesmo no verão. Miguel inspirou o ar mofado, pensando em sua busca por um apartamento, uma casa, uma casca. Há dias, entrava em mundos outros e ia descobrindo vidas que apenas adivinhava.
Sem informação a respeito da biografia dos antigos moradores, esboçava personagens de acordo com o estado do banheiro, do piso, da cozinha... o apartamento da moça que colecionava palavras era triste. Perguntou ao corretor se ela havia morrido. Ele não sabia, ou disfarçou muito bem.
Tentou formar frases com os tais rabiscos. Não foi possível.
Pedra,
sonho,
borboleta,
chuva,
lástima,
lágrima,
meiguice,
triste,
espelho,
e aí seguiam em linhas tortas e com a mesma letra trêmula, sofrida.
Passou o resto da tarde pensando na tal colecionadora. Solitária deveria ser, num prédio decadente, de esquina, no centro. Lembrou do que o melhor amigo disse: "será que escolhemos nossa vida ou nossa vida nos escolhe?"
E mais adiante completou o pensamento: "Não faça de sua nova casa uma casca. Não se enterre lá, como costuma fazer quando quer evitar os encontros..."
Ficou com medo de terminar sozinho ou acabar colecionando fragmentos de coisas acontecidas por receio de apagá-las da memória. Guardar para lembrar que viveu... acumular estímulos para fazer sentido.
Imagem: Wolney Fernandes
Um comentário:
"If it be now, 'tis not to come: if it be not come, it will be now: if it be not now, yet it will come: the readiness is all."
It sounds better in Portuguese,m though!
Great quote!
See ya around!
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