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domingo, 27 de junho de 2010

Dores que brincam

Meu olhar no espelho não reconhecia meus próprios traços. Quem era aquele estranho de olhos grandes, queixo retraído e cabelo desgrenhado que me encarava com pontos de interrogação sem medidas? Foi ali, diante da penteadeira da minha mãe que minha infância escorreu entre os reflexos de uma adolescência que se iniciava sem minha permissão.

Crescer não estava nos meus planos e, por vezes, ainda tento voltar àquela criança encantada diante do mundo. Mas os encantamentos que brotavam dos meus olhos naquele período, também faziam germinar medos pelo meu corpo inteiro. Queria fazer parte do mundo, mas não tinha a chave para habitá-lo e, por isso, me escondia.

Meus esconderijos me permitiam observar ao meu redor sem ser notado porque todas as minhas tentativas de fazer parte da roda eram frustradas pelas minhas vontades que não condiziam com as vontades dos outros. De alguma forma não me encaixava e, até hoje, sigo tentando ajeitar um lugarzinho para habitar. Brincando de pronunciar alegrias, quando, na verdade, minha fluência são as tristezas.

O sabor da infância, mesmo diante da realidade, por vezes cruel, não me deixou. Ele permanece em instantes bem particulares, difíceis de desfiar em palavras descritivas. Talvez eu não dê importância para o adulto que me tornei porque o gostinho daquela vida de menino que não se incomodava com a própria imagem no espelho ainda esteja em minha boca.

De verdade, o adulto que veio depois daquele menino só quer terminar as tarefas que lhe foram atribuídas para voltar para o quintal e, de lá, inventar brincadeiras sem começo e sem fim.

Há ainda aquela estranha sensação de que não aproveitei tudo no tempo certo. Todos os desvelamentos sobre a minha própria condição chegaram tardiamente como se eu pudesse esticar o tempo e repousar em eternidades inventadas. Só fui lembrado que o tempo da vida é finito quando perdi meu pai e a morte riscou por cima dos meus desenhos um traçado estranho sobre o qual eu deveria caminhar dali em diante.

De lá pra cá, cada fio prateado ou ruga em meu rosto assimétrico refletem imagens sem finalizações. Diante delas e de todas as perguntas que ficaram sem repostas, inventei um jogo solitário que me colocou no movimento de "ir sem nunca chegar". Paradoxalmente, sem esse movimento não teria conseguido chegar até aqui.

Mas e daqui em diante? Apenas jogos inventados parecem não bastar para dar conta de toda essa "adultice" patológica que me toma por inteiro. As alegrias que pronuncio me enganam de mim mesmo enquanto minhas tristezas não fazem nada. E assim permaneço... ou pior, envelheço guardando dores perdidas de ontem, anteontem e de anos atrás.

Por hora, nesta madrugada de junho, só um pensamento vai me fazer dormir: O de que a dor também gosta de brincar. E assim, quando ela parece vir para aquietar a gente, na verdade, ela vem mesmo é pra gente pegar impulso.

Imagem: "O Filho do Homem" de René Magritte.

Um comentário:

Odailso Berté disse...

Menino da cidade abraçada pelo rio... Mesmo que alguns dias sejam escuros, mesmo que você caia, mesmo que você não saiba expressar suas genuínas vontades, mesmo que seu amor seja infante, mesmo que o seu doce olhar fique turvo, mesmo que você não reconheça sua imagem, mesmo que você não retribua comentários... Gratuítas retribuições virão a você, como portas que se abrem para você se (re)inventar. Adentre... Ainda é tempo de crescer sem esquecer a bela criança que dança em você, deixando que ela mostre seu rosto sem mais precisar se esconder... Já é tempo de deixar essa criança dançar livre, sem medo de se mostrar e seguir dizendo ao mundo a que veio. O mesmo abraço que o rio oferta à sua cidade natal está aberto e latente só para você... Adentre...