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sábado, 19 de fevereiro de 2011

"A vaidade mata quando a beleza é muita"

De imediato, ao deixar a bolsa enorme na cadeira que separava o meu lugar e o dela, perguntou: "Como é seu nome?" - Fiz cara de paisagem para disfarçar minha surpresa diante da abordagem inesperada e respondi: "Meu nome é Wolney". A desconhecida de quarenta e tantos anos sentada do meu lado era alta, cabelos nos ombros e montes de pulseiras no braço.

"Menino, mas que coincidência! Wolney é o nome do meu cunhado que morreu" - notei que seus olhos conferiam a senha que tinha nas mãos com os números que apareciam no painel digital da agência central dos correios. Ela apertava os olhos e esticava o braço para enxergar melhor e continuou: "Conhece o Apolo?"
Antes que pudesse pronunciar um "não" audível ela se antecipou: "Apolo, aquele deus do amor lá dos gregos". Ao abrir a boca para responder, ela me deu maior tapão no ombro e, como se fóssemos velhos conhecidos, sapecou: "Apolo, aquele que morreu afogado porque era muito bonito." Dei um sorriso amarelo e corrigi: "Você quer dizer Narciso?"

"Isso! Esse aí mesmo. Eu confundo as bolas dos deuses. Meu cunhado morreu igual ao Naciso".

"Afogado?". Perguntei com um riso no canto dos lábios quando ela pronunciou Narciso sem a letra "r".

"Não. O Wolney morreu porque era bonito demais. A coitada da minha irmã já não tinha mais testa. Foi chifre demais que ele colocou nela. Era com mulher, era com homem. Você sabe como é caminhoneiro, né? Meu cunhado não deixava passar ninguém. Ele era bonito demais da conta". Sem entender direito a causa da morte daquele Wolney - que fora abençoado com a beleza clássica dos deuses gregos - ousei perguntar: "Mas como foi que ele morreu?". Com um movimento brusco ela saltou de pé no exato momento em que o barulho da campanhia indicando a próxima senha ressoou e remexendo na bolsa jeans explicou: "Doença venéra" [a palavra 'venérea' pronunciada sem o "e"].

"Teve que cortar o troço fora. Durou ainda uns dois anos, mas morreu quando a doença voltou. E foi a boba da minha irmã quem cuidou dele até o dia da morte. Ele só aceitava ela pra dar banho nele. Pediu perdão a ela pelas traições e morreu jovem: 42 anos. Moço bonito que nem ele, só artista de novela"

Ao encontrar a lixa de unha que procurava na bolsa, sentou novamente e continuou, agora em um tom mais tranquilo: "É por isso que eu digo, a vaidade mata quando a beleza é muita! Só sendo de família boa pra escapar!".

Nesse exato instante, minha senha piscou no painel: "Minha vez!" consegui me despedir rapidamente e enquanto caminhava para o balcão tentei entender direito aquele monólogo, mas não consegui. Depois, enquanto me dirigia até a saída, notei [com o rabo do olho] que ela tinha mudado de lugar e agora reclamava dos nomes das ruas de Goiânia a um homem com um olhar ainda mais confuso que o meu.

Suspirei aliviado: "Escapei!"

Pintura: "No espelho das águas" de John Waterhouse. Imagem capturada aqui. 

2 comentários:

Odailso Berté disse...

Isso é o que se pode chamar de "Mitologia Cotidiana". Entre emendas e remendos, nomes e feitos, eu, você, a vizinha, a tia, o barbeiro, etc... Vamos tecendo versões próprias das gramáticas a nós ensinadas. Reescrevemos, recortamos, bricolamos e relemos de formas mil, a ponto de Apolo, Narciso e Wolney serem muitos e um só ao mesmo tempo. Entre mitos e ditos, fazemos da coisa pequena um artefato bonito.

Estágio Supervisionado disse...

Tens muita qualidade, desenhista,bom professor e escritor, realmente escreveu uma boa mitologia cotidiana...