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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Autorretrato*


Me colaram no tempo, me puseram uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo, a leste pela impossibilidade de voar, a oeste pela minha educação.

Me vejo numa nebulosa, fluido... mesmo assim, me puseram o rótulo de sério, centrado. Vou rindo, vou andando aos solavancos. Desenho, rio e choro. Estou aqui e ali em desarticulações de dar dó.

Sou um cemitério pelo avesso, pois meus mortos estão em covas rasas. Carrego minhas saudades com o carinho de quem vive pelas memórias. São elas que me revelam o sentido verdadeiro das coisas. A morte só pesa por fora, tudo por dentro tem intenção de vida.

Toda segunda eu deixo de lado minhas imperfeições para, então, recolhê-las na terça. Ô caminho longo esse que coloca na vida o gosto de brevidade. Escrevo, agora, querendo terminar logo, no desejo tardio de ainda escrever muito.

Gosto do vento que me suspende os passos e, vez por outra, bagunça todas as agonias. No espelho, fico aliviado quando não me reconheço. Tenho vontade de inaugurar no mundo o estado de bagunça transcendente. Mas sou a presa do homem que fui há vinte anos passados, dos amores raros que tive, de uma vida de planos ardentes, de desertos vibrando por instantes de felicidade.

(*) Postagem de número 1000.
Foto: Wolney Fernandes

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