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domingo, 22 de dezembro de 2013

Vidas Secretas


Eu tenho lapsos oníricos. Seja na reunião chata do trabalho ou enquanto caminho pelo centro da cidade, vez por outra, encontro um lugar que foge aos sentidos. É certo que a capacidade de inventar realidades para dar conta dos meus sonhos já foi maior. Hoje são lapsos apenas, mas antes, sonhar era um estado, quase uma permanência. O primeiro fato que me fez sair desse lugar/estado e me me enfiou, goela abaixo, uma realidade de onde não era possível sempre fugir foi a morte do meu pai.

Quando a morte soprou sua sentença ao pé do meu ouvido, há 22 anos atrás, ela não só pronunciou vazios e saudades, como também ditou ordens severas: "Saia daí!" Não há tempo para devaneios futuros porque o presente não espera a brincadeira terminar.

Vários sonhos eu tive que guardar. Alguns se perderam pelo caminho e outros eu escondo em traços de desenhos, em objetos que coleciono, em manchas de umidade na parede ou em percursos feitos pelos meus olhos em cada esquina. São vestígios de sonhos, guardados para ventilar a realidade que caminha em compasso diferente dos meus desejos. 


"A vida secreta de Walter Mitty" [The Secret Life of Walter Mitty, EUA, 2013] é recheado com esses sopros oníricos. A cada fuga cinematográfica do protagonista - todas muito bem alinhavadas - eu embarcava, com ele, numa viagem sem passagem de volta. A beleza de cada uma das cenas, brilhantemente fotografadas e ordenadas para agradar os olhos e a alma asséptica de qualquer designer gráfico ajudaram bastante nisso! No mundo idealizado, no meu e no de Mitty, tudo está no lugar e obedece uma grid imaginária que enquadra nosso cotidiano ao som da melhor trilha sonora (Space Oddity do David Bowie, só pra começar!) e o conduz por aventuras mirabolantes sob o azul de um céu que está sempre aberto.

Uma realidade imaginada assim é, de longe, um deleite visual. E se digo "de longe" é porque, de perto, bem ali na tela do cinema e aqui na minha cabeça, algumas delas parecem slides de powerpoint motivacionais. 

Embora fale, exalte e até exagere um pouco nas virtudes de "acreditar em si mesmo", Walter Mitty é mais do que um filme de autoajuda. É também sobre os conflitos do digital sobre o analógico e das estratégias que precisamos rever para que essas duas esferas não se contraponham, mas se complementem em maior ou menor escala, dependendo do modo como nos relacionamos com elas.

A história, bem simples, gira em torno de um homem frustrado que usa a imaginação como maneira de escapar de seu cotidiano opressivo. Chefe do departamento de negativos da revista Life, Walter precisa encarar a realidade quando a foto que irá estampar a capa da última edição impressa da publicação desaparece.


Walter Mitty, como eu, surge como um sonhador naturalmente incorrigível e, ao menor sinal de problema, planta os dois pés nas nuvens. Medos e inseguranças permeiam seu cotidiano fazendo com que ele o recrie mentalmente, imaginando as situações de um ponto de vista ideal.

Quantas vezes eu também já fiz isso? Inúmeras. Na mais recorrente delas, eu saio de casa para estudar, ainda na adolescência, e ganho o mundo sem precisar olhar para trás.

Foi preciso a morte me tocar de maneira tão próxima para que eu compreendesse que "olhar para trás" também é movimento da vida, essa danada que além de não caber nos sonhos, ainda não se desenha em linha reta. Nesse constante ir e vir, eu sigo. E se não dá para saber a trilha da felicidade ou amarrar todas as pontas soltas como no filme, o jeito é aprender a "mastigar as dores e colocar a vida no presente"*.

(*) Citação de Walderes Brito

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