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sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Iniciantes - Do que falamos quando falamos de Raymond Carver


“Naquela manhã, ela derrama uísque Teacher’s em cima da minha barriga e lambe. De tarde, tenta se jogar pela janela.”

Talvez essa seja a frase que resuma com precisão as contradições (deliciosas, diga-se de passagem) que permeiam os contos de Raymond Carver no livro "Iniciantes". Quando falo em contradições procuro ressaltar que as histórias escritas pelo autor nos colocam sempre diante de personagens moldados por sentimentos antagônicos, por vezes duvidosos, mas nunca irreais.

Os dezessete contos que dão corpo a esta edição transitam por histórias de amor mal resolvidas, brigas entre casais, perdas, acertos de contas entre pais e filhos, entre esposas e maridos e amizades que surpreendem por seus contornos contrastantes. As relações desfiadas pelo autor estão sempre em mutação e, por isso, são muito palpáveis, muito parecidas com a vida real.

"A morte é lugar nenhum, Nancy. Pode escrever o que estou dizendo."

"Quer ver uma coisa?" foi um dos contos que conseguiu fazer com que eu olhasse pra mim mesmo em busca daquilo que, de certa forma, desconecta quem eu quis ser de quem eu sou e, pelas indagações da esposa que acorda no meio da noite para conversar com o vizinho pude enxergar minhas próprias limitações com muito mais clareza tamanha a inquietação que a história imprime.

"Não sei por quê, mas de repente me senti muito longe de todo mundo que eu tinha conhecido e amado quando era garota. Senti uma saudade das pessoas. Por um momento, fiquei lá parada e desejei poder voltar para aquela época. Então, quando pensei de novo, entendi com clareza que não podia fazer aquilo. Não, mas então me veio a cabeça que a minha vida não se parecia nem remotamente com a vida que eu achava que ia ter quando era jovem e vivia cheia de expectativas,"

"O lance" é uma conversa difícil entre pai e filho onde o pai deseja relatar ao filho o tal lance que mudou a vida de ambos e é escrita de forma tão incrível que não dá para tecer julgamentos diante de personagens tão complexos. Isso é uma característica marcante do autor que consegue, em poucas páginas, moldar e desenvolver personagens tão verossímeis.

Carver é dono de uma escrita crua, precisa, por vezes, dura e, em função disso, suas histórias não seguem uma estrutura convencional. Entramos por seus contos como se estivéssemos de passagem, em constante movimento. Passa-se pelos conflitos e pelas situações e é como se as histórias continuassem para além do nosso olhar de leitor. Por isso não há desfechos, mas portas de saída sem ápices ao final de cada uma delas.

O conto que dá título ao livro é quase todo construído por diálogos entre dois casais que, reunidos na casa de um deles discutem suas convicções acerca do que é o amor. O modo como Carver tece a escrita entre os diálogos e o que acontece entre eles é muito dinâmico, quase como se não se tratasse de ficção, mas de realidade.

O livro "Iniciantes" lançado pela Cia. das Letras em 2009 é a reunião dos contos em sua versão original, assim como o autor os escreveu e com diferenças bem marcantes da sua primeira publicação em 1981. Sob o belo título "Do que estamos falando quando falamos de amor" estes mesmos contos foram editados por Gordon Lish, editor de Carver na época do primeiro lançamento, que cortou quase 50% do conteúdo original. Polêmicas à parte, fica a certeza do talento de um escritor que eu nunca tinha ouvido falar, mas que já figura entre os melhores que eu já li nessa categoria.

Foto: Wolney Fernandes

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