Amarelo e marrom eram as cores do meu ônibus. De todos os presentes que ganhei do meu tio, o ônibus de madeira que ele cuidadosamente fabricou para o sobrinho mais velho foi aquele que minha memória salvou do quarto dos esquecimentos. A tinta à óleo que fazia reluzir meu brinquedo ainda tem o cheiro das mãos habilidosas de Tio Joãozinho.
Nas paredes do seu quarto, eu me perdia pelas ruas de Lagolândia que ele pintava fazendo a ladeira da casa da minha avó escorrer por entre as rachaduras e frestas do reboco antigo. Não fosse reinventar o mundo com seus desenhos, Tio Joãozinho seria dono apenas de suas tintas, das garças esculpidas em madeira e do violão que ele tocava em afinações precisas.
Era aquele tio que, mesmo adulto, sabia mergulhar no mundo das crianças sem medos bobos de se perder em traquinagens e cores já bem esmaecidas aos olhos dos adultos. Era aquele tio que registrava em máquinas fotográficas sem foco, as imagens dos sobrinhos no quintal.
Ainda jovem, sofreu um acidente que lhe custou uma das pernas - substituída por uma prótese mecânica que lhe conferia uma altivez peculiar ao caminhar. Tinha porte de herói aos meus olhos, pois de suas mãos saíam brinquedos, afagos e moedas em troco que viravam balas e chicletes. Era um homem-menino que eu admirava porque enxergava minhas vontades de desenho e reclusão. E as respeitava!
Salvo precocemente de um casamento fracassado e sem filhos, ele nunca se ajustou àquele ambiente rural que vivíamos e, apesar de amar os seus, partiu se aventurando por lugares de calor e febre amarela. De lá, me escreveu cartas que vinham sempre ilustradas com desenhos que se abriam em viagens imaginárias. De lá, mandou modernas máquinas de costura para minha avó e camisetas que ele mesmo estampou para os irmãos e cunhadas.
Meu tio tinha nome de rei mago: Gaspar. Mas até hoje, é o diminuto apelido - Joãozinho - que faz com que o reconheçamos em memórias de uma infância entalhada em madeira, chicletes e caprichosas pinturas de amarelo e marrom.
Imagem: Eu e minha irmã fotografados no quintal de casa por Tio Joãozinho em fevereiro de 1986.
(*) Este texto foi escrito porque o livro "Meu Tio" de Jean-Claude Carriére não passou pelos meus olhos sem despertar minhas memórias de sobrinho.
3 comentários:
Menino, artista, sobrinho (dele), Wolney: não sei que mágica também sai de suas mãos para fazer tão longíncua realidade se descortinar diante de meus olhos e enchê-los de lágrimas. Há sim algo de muito talentoso nessa família, que agora, você é o representante oficial. De Joãozinho para Wolney, a correnteza sanguínea com glóbulos de arte continua viva e envivecendo quem por ela se molha de emoção.
Lindo texto! Conheço o filme "Meu Tio" ("Mon Oncle"), de Jacques Tati - embora nunca o tenha visto... Segue escrevendo, tens talento e retina.
na paredes da memória... um brinquedo e um tio. Um tio de brinquedo ou um brinquedo de tio.
quão rizomáticas são nossas lembranças, né?
a sua tem gosto de alfenins.
cara, um tio artista na família já era indício de seu futuro. rs
abç
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