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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

A vida é curta demais - Leitura de Ulysses


A leitura de Ulysses continua lenta, mas repleta de sustos, identificações e pedras pelo caminho. Estou cada vez mais impressionado com o modo como Joyce consegue arquitetar estruturas muito contemporâneas no que diz respeito à forma da escrita. O trecho abaixo é um bom exemplo dessa impressão. Li e logo me veio à cabeça uma relação com as hashtags tão usadas hoje em dia:

“Coloque o coitadinho do bisavô Craahraarc! Oioioi toumuitcontent craarc toumuitocontentderrevervocês oioi toumuitr crptschs.” [p. 243]

O tom irônico com o qual ele descreve determinadas passagens também tem deixado a leitura bem interessante. A impressão que dá é que ele estava se divertindo bastante enquanto escrevia. Vejam um exemplo dessa fina ironia no trecho abaixo que me fez dar várias gargalhadas:

“Lê primeiro ao contrário. Faz rápido. Deve exigir alguma prática isso. mangiD. kcirtaP. O coitado do papai com o seu livro do hagadah, lendo de trás pra frente com o dedo para mim. Pessach. Ano que vem em Jerusalém. Ah, que coisa! Toda aquela estória comprida de isso nos trouxe da terra do Egito para a casa da servidão aleluia. Shema Israel Adonai Elohenu. Não, esse é o outro. Depois os doze irmãos, os filhos de Jacó. E aí o cordeiro e o gato e o cachorro e o bastão e a água e o açougueiro e aí o anjo da morte mata o açougueiro e ele mata o boi e o cachorro mata o gato. Parece meio bobo até você olhar direitinho. Quer dizer justiça mas é todo mundo comendo todo mundo. É isso que é a vida no final das contas." [p. 255]

O modo como o autor profana e brinca com obras clássicas é, em grande parte, o melhor da leitura. Gosto de pensar a escrita como um espaço para a subversão, um lugar para triturar o que nos parece impronunciável e quando Joyce pega, por exemplo, um trecho de Hamlet de Shakespeare e o coloca no diálgo que reproduzo abaixo, sinto que ele faz isso com muita propriedade:

“- A lua, o professor MacHugh disse. Ele esqueceu o Hamlet.
- Que vela a vista toda ao longe e espera por que o orbe luminoso da lua fulgure a irradiar sua argêntea efulgência...
- Ai! O senhor Dedalus gritou, ventilando um lamento desesperançado, bosta com cebola! Chega, Ned. A vida é curta demais.”
[p. 259]

Sim, a vida é mesmo curta demais! Melhor mesmo é coloca-la no presente.

Foto: Wolney Fernandes

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