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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Lavoura Arcaica - Breviário de belezas e perturbações


Livro para o desafio literário: Os Componentes da Banda

Eu que já não rezo há bastante tempo, ao ler algumas partes de "Lavoura Arcaica"me senti recitando uma oração. A escrita de Raduan Nassar é tão apurada e precisa que cada palavra parece lapidada e minuciosamente escolhida para estar naquele ponto específico. É como se o texto inteiro dependesse dessa única fórmula e diante da possibilidade de retirar qualquer palavra do lugar, houvesse uma espécie de desmoronamento de capítulos inteiros.

Essa arquitetura apurada da escrita, a grande intertextualidade com temas e arquétipos bíblicos e até algumas repetições ampliaram essa sensação de estar diante de um texto sagrado.

"o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, (...) em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania inconstestável do tempo (...) é através da paciência que nos purifica, em águas mansas é que devemos nos banhar, encharcando nossos corpos de instantes apaziguados, fruindo religiosamente a embriaguez da espera no consumo sem descanso desse fruto universal"

Com estrutura decalcada, mas invertida, da parábola do Filho Pródigo, a trama gira em torno de uma família orientada por um pai rigoroso e cuja partida de um dos filhos contribui para seu desequilíbrio interno. O livro começa quando Pedro ("Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja" Mt. 16,18), o irmão mais velho, chega para levar André, o irmão desgarrado, de volta ao seio da família. Os fatos que levaram André a deixar a casa vão sendo revelados, aos poucos, e trazendo com eles as transgressões e perturbações de um protagonista atormentado por um segredo que ele carrega há muito.

Alternando entre o repúdio e a complacência, André vai esmiuçando a figura da família como uma sociedade inviolável e de como essa ideia sulca feridas incuráveis em quem submete os próprios sonhos e desejos à manutenção dessa imagem.

"que culpa temos nós se fomos duramente atingidos pelo vírus fatal dos afagos desmedidos? que culpa temos nós se tantas folhas tenras escondiam a haste mórbida desta rama? que culpa temos nós se fomos acertados para cair na trama desta armadilha?" [129]

Me impressionou bastante o modo como o autor consegue dar contornos poéticos e sagrados às questões relacionadas ao corpo numa outra inversão à máxima utilizada pela tradição cristã onde é a alma que merece toda pompa e circunstância. No livro, o corpo assume uma inteireza diante das grandes decisões que conduzem André a escrever sua história sob outra cartilha que não àquela ditada pelo pai.

"pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo." [p. 7]

Sem definir um tempo cronológico, Raduan instaura outros tempos dentro de cada parte de "Lavoura Arcaica" fazendo com que a gente navegue por seus capítulos, ora impulsionados por uma escrita sem pontuação e ora por um ritmo mais lento e pensativo, também imposto pelo uso preciso da linguagem. Há de se destacar também a simbiose dos personagens com os ambientes que os abrigam. Uma obra cuja forma e conteúdo comungam de modo muito íntimo.

Refletir sobre os personagens dessa história tão bem contada é pensar sobre as convenções trazidas e passadas de geração a geração. A correção do caráter e a necessidade de cuidar da união da família, o andar correto sob as leis da religião e a não transgressão das regras sociais são paradigmas mantidos pelo patriarca e quebrados, um por um, pelos atos de André que, humano como nós, se inquieta diante dos próprios desejos e os considera ao invés de ignorá-los.

"colherei, uma a uma, as libélulas que desovam no Teu púbis, lavarei Teus pés em água azul recendendo alfazema, e, com meus olhos afetivos, sem me tardar, irei remendando a carne aberta no meio dos Teus dedos; Te insuflarei ainda o ar quente dos meus pulmões e, quando o vaso mais delgado vier a correr, Tu verás então Tua pele rota e chupada encher-se de açucar e Tu boca dura e escancarada transformar-se num pomo maduro." [p. 103]

Ler "Lavoura Arcaica" - como eu disse no início - foi uma experiência religiosa tamanho o mergulho e o comprometido que a obra parece exigir de quem a lê. A diferença é que, ao chegar ao seu final, não precisei voltar ao começo para que ela se renovasse, pois diferente das orações, muitas vezes recitadas sem sentido, as palavras de Raduan além de remexerem em concepções internas, também tatuaram arrepios na minha pele.

P.S.: Há uma adaptação do livro feita para o cinema pelas mãos sensíveis de Luiz Fernando Carvalho. O filme completo está disponível no YouTube e vale uma conferida, pois uma de suas inúmeras qualidades é a manutenção fiel do texto do Raduan na transposição para as telas. Para assistir, clique aqui.

Imagem: Wolney Fernandes

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