
Revirando velhos arquivos, encontrei uma ilustração do tempo que eu sonhava ganhar a vida desenhando.
Dia desses, era 2044. Eu, com 70 anos, falava sobre o ausente, contava das tintas do passado. Caminhava pela casa que abrigava minhas obras, acarinhadas à luz que entrava entardecida pelas janelas.
Ao olhar pra fora, minhas calmarias pareciam preceder tempestade, faroleiro a aguardar navios impossíveis, sem chegadas. Abria o coração de fundas gavetas de onde escorriam lembranças em forma de cartas, cadernos de esboços, desenhos, estudos, agora, latentes de passado. Tudo era. Tudo tinha sido.
Pulsava em mim um coração entremeado de orgulhos e arrependimentos, sorrisos mudos, de tradução impossível. Pelos cantos, liam-se fragmentos que me pertenciam. O vinco vertical que escorria dos meus próprios olhos era medo do vazio. Era fundo o solitário espaço da criação. O singular do copo, do prato, da xícara, sem truques, sem rumores, sem amores. Só pudores.
Tonto pelo salpicamento de muitas perguntas, gritei para alguém me acordar!
Imagem: Wolney Fernandes
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De Adriano Antunes, Amor por Pontuação.
Pensas em mim (?)
Quando me sinto azulejo
Parede úmida de banheiro
Rejunte?
Quando meu hálito batiza o espelho
Com desenho a dedo de sorriso
Breve?
Pensas em mim (...)
Como água de torneira
Que limpa a sujeira
E pelo ralo se vai.
Ah... Pensas em mim (,)
Nas segundas-feiras
De domingos esquecidos
Em promessas de sábado.
Nada mais
(.)