
Revirando velhos arquivos, encontrei uma ilustração do tempo que eu sonhava ganhar a vida desenhando.
"Caminhamos ao encontro do amor e do desejo. Não buscamos lições, nem a amarga filosofia que se exige da grandeza. Além do sol, dos beijos e dos perfumes selvagens, tudo o mais nos parece fútil. Quanto a mim, não procuro estar sozinho nesse lugar. Muitas vezes estive aqui com aqueles que amava, e discernia em seus traços o claro sorriso que neles tomava a face do amor. Deixo outros a ordem e a medida. Domina-me por completo a grande libertinagem da natureza e do mar."
Querida Sofia!

De onde vem essa inquietude que me entorpece os sentidos?
"O fim do homem é sempre mais marcado que o seu início. O por do sol, a música de encerramento; assim como a última mordida do doce é sempre a mais doce no final.
Sophie Calle, a cultuada artista contemporânea francesa, namorou o famoso escritor Grégorie Bouillier até que ele resolveu terminar o relacionamento por e-mail. A artista, de posse do e-mail do ex, pediu que 104 mulheres o intrepretassem e dessem uma resposta. As 104 manifestações foram reproduzidas em texto, música, poema, foto ou vídeo e reunidas em uma exposição que a artista intitulou "Cuide-se".
Dia desses, era 2044. Eu, com 70 anos, falava sobre o ausente, contava das tintas do passado. Caminhava pela casa que abrigava minhas obras, acarinhadas à luz que entrava entardecida pelas janelas.
Ao olhar pra fora, minhas calmarias pareciam preceder tempestade, faroleiro a aguardar navios impossíveis, sem chegadas. Abria o coração de fundas gavetas de onde escorriam lembranças em forma de cartas, cadernos de esboços, desenhos, estudos, agora, latentes de passado. Tudo era. Tudo tinha sido.
Pulsava em mim um coração entremeado de orgulhos e arrependimentos, sorrisos mudos, de tradução impossível. Pelos cantos, liam-se fragmentos que me pertenciam. O vinco vertical que escorria dos meus próprios olhos era medo do vazio. Era fundo o solitário espaço da criação. O singular do copo, do prato, da xícara, sem truques, sem rumores, sem amores. Só pudores.
Tonto pelo salpicamento de muitas perguntas, gritei para alguém me acordar!
Imagem: Wolney Fernandes
"Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pântano de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.
Desafiante da Semana: Wolney Fernandes
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De Adriano Antunes, Amor por Pontuação.
Pensas em mim (?)
Quando me sinto azulejo
Parede úmida de banheiro
Rejunte?
Quando meu hálito batiza o espelho
Com desenho a dedo de sorriso
Breve?
Pensas em mim (...)
Como água de torneira
Que limpa a sujeira
E pelo ralo se vai.
Ah... Pensas em mim (,)
Nas segundas-feiras
De domingos esquecidos
Em promessas de sábado.
Nada mais
(.)

